terça-feira, 23 de janeiro de 2024

BARBOSA 1971: A GLÓRIA NO PASSADO

Na história das peladas quem vai para o “goal” é sempre o pior do grupo. Entretanto, isso não acontecia com Barbosa, que sempre queria ser o goleiro: — A turma não deixava, pois eu tinha um chute muito forte e era preciso alguém assim lá na frente para decidir. Mas jogar na linha não interessava a Barbosa e chegava a impor: “de goleiro ou não jogo”- Por fim, todos concordaram que ele tinha que ser mesmo arqueiro e o Brasil ganhou um dos maiores jogadores na posição: — Foram 22 anos de atividade, começando em 40 em São Paulo e terminando em 62, no Rio. Isso, oficialmente, pois ainda continuo nas minhas peladinhas. Barbosa é um homem feliz e contando os seus títulos passa horas e sempre com boas histórias: — Consegui os títulos de campeão carioca, brasileiro e sul americano. só faltou mesmo o mundial. A maior alegria de Barbosa foi a conquista do torneio dos campeões em 1948: — O Vasco era uma máquina. Em São Januário, Barbosa foi campeão em 45, 47, 49, 52 e 58, contando ainda o bicampeonato de aspirantes de 60/61. O maior goleiro do Vasco de todos os tempos não temia adversários: — Todos querem ganhar o Vasco, e minha obrigação era evitar que isso acontecesse. Fonte: Revista Placar Edição Especial 1971

domingo, 21 de janeiro de 2024

VASCO 1977: VASCÃO CAMPEÃO

Em 1977, o zero a zero mais festivo do Maracanã. Um novo time estava crescendo. Dirceu, Orlando, Geraldo, Abel e depois Wilsinho reforçavam um time que já era de respeito. E, em 1977, o Vasco saiu esmagando, tornando-se logo bicampeão da Taça Guanabara. Aí, iniciou uma excursão cansativa e, na volta, não faltou quem garantisse que o gás ia acabar. Acabou? Não. O Vasco voltou foi correndo o dobro, jogando fino— não perdeu mais um jogo, não tomou mais gol. E, na final com o Flamengo, se não houve a sonhada explosão da artilharia, houve a confirmação de uma superioridade. Foi zero a zero— o mais carnavalesco zero a zero da história do time, da história do Maraca. Fonte: revista placar 1979

segunda-feira, 19 de junho de 2023

VASCO 1923: 100 ANOS DO CLÁSSICO DOS MILHÕES: A VERDADEIRA ORIGEM DA RIVALIDADE ENTRE VASCO E FLAMENGO

O primeiro clássico oficial1 no gramado entre Vasco e Flamengo se deu num domingo, dia 29 de abril de 1923, jogo valido pelo campeonato carioca. O Flamengo jogou em casa, naquele tempo o rubro-negro mandava seus jogos no modesto estádio da Rua Paysandu (campo de propriedade da família Guinle). O jogo foi extremamente concorrido, uma multidão se mobilizou para assistir a partida. Lembrando que naquela época não havia sequer transmissão de rádio. Cada pedaço da arquibancada foi disputado. A obra Club de Regatas Vasco da Gama Histórico 1898 – 1923, de José da Silva Rocha2, definiu essa partida como a nascente do “Jogo das Multidões” e que depois, nas décadas seguintes, iria se eternizar como o “Clássico dos Milhões”.

“Os portões tiveram de encerrar-se muito antes do início do jogo principal. As vendas dos ingressos ainda não terminado o encontro dos segundos teams tinham sido suspensas”3.

O Vasco vinha embalado. A torcida cruzmaltina acompanhou a ascensão do time. A cada vitória, mais vascaínos compareciam nos jogos seguintes. Assim foi contra o Flamengo, segundo Rocha, os vascaínos assumiram o comando da torcida no campo da Rua Paysandu. Isto é, o Vasco tinha maioria dos torcedores no estádio com mando de campo do rival.

Os Camisas Negras, como era chamado o Vasco, entrou em campo com: Nelson da Conceição; Claudio; Leitão; Nicolino; Bolão; Arthur; Paschoal; Torteroli; Arlindo; Ceci; Negrito. O arbitro que teve o privilégio de apitar o primeiro clássico oficial foi Mário Polo (desportista ligado ao Fluminense FC que no ano seguinte seria um dos algozes da  imposição racista e elitista da AMEA contra o Vasco da Gama)4. O jogo ocorreu com normalidade e o Vasco venceu o adversário por 3 tentos a 1. Os gols dos Camisas Negras foram marcados por Ceci (dois) e por Negrito (um).

“Ao trilar do apito foi impossível transitar nas ruas Paissandú e Pinheiro Machado. Legiões de partidários do clube vencedor encheram de cânticos e vivas todo o bairro de Laranjeiras. E na Lapa em frente á tradicional Capela os comentários e manifestações tiveram aparência de comício”5.

O jornal Correio da Manhã destacou a comemoração vascaína:

“Até tarde da madrugada ouvia-se, de vez em quando, o enthusiasmo e a alegria dos torcedores do club vencedor. Na sede náutica do Vasco, em Santa Luzia, houve um animado reco-reco, sendo feita aos jogadores uma carinhosa manifestação”6.

Conforme os fragmentos apontados acima a torcida do Vasco, após o jogo fez um verdadeiro carnaval no trajeto Zonal Sul x Centro da Cidade. Um cortejo com muita alegria, orgulho, cerveja e gozação. Uma manifestação espontânea, com típicos traços de autenticidade carioca. Era o Vasco e sua torcida se apresentando na elite do futebol brasileiro.

No dia 8 de julho ocorreu a segunda partida entre Vasco e Flamengo. Era a terceira rodada do returno do campeonato. O Vasco estava imbatível, já havia atropelado o América, Botafogo, Flamengo e Fluminense (todos em seus respectivos estádios). Já se somavam oito vitórias consecutivas. Havia chegado a hora do segundo match contra o Flamengo e desta vez o Vasco era o mandante do jogo. Como o precário estádio da Rua Morais e Silva (Tijuca) foi vetado pela Liga Metropolitana, a diretoria resolveu alugar o estádio das Laranjeiras, campo do Fluminense, para mandar seus jogos oficiais naquele ano. Quer dizer, o Vasco em seu primeiro ano na 1a divisão do campeonato carioca teve a ousadia de alugar o, até então, maior estádio da Cidade para mandar seus jogos.

De tal modo, assim como no campo da Rua Paysandu, o estádio das Laranjeiras também recebeu seu maior público. Uma multidão ocupou todos os lugares das arquibancadas e da geral. Havia gente inclusive dentro do campo e um número enorme de pessoas não conseguiram entrar no estádio devido sua lotação. E “a verdade que se acentue: muito mais vascaínos do que rubro-negros”7.

Mais de 35 mil pessoas, sem exagero, enchiam as vastas dependências do tricolor”, contou “O Imparcial”. “Jamais, nesta capital, affluiu igual concurrência em jogos de football, nem mesmo durante os matches do Sul-Americano. Não havia um único lugar no ground. Calculamos em cerca de 55 mil pessoas o número de espectadores verificado hontem”, garantiu o “Jornal do Commércio”. “A partida assumiu a proporção de um vultuoso acontecimento, que ultrapassou os limites do mundo sportivo, para interessar, fora desse âmbito, à toda cidade. Não há positivamente exemplo, no Rio, de um facto ou de um match que tenha despertado interesse tão vivo. Não conhecemos, francamente, na história do football carioca uma competição que tivesse alardeado tão ruidoso sucesso”, descreveu o “Correio da Manhã”8.

O arbitro da partida foi Carlos Martins da Rocha, o Carlito Rocha do Botafogo9. Um personagem folclórico do futebol carioca por seus traços exotéricos e supersticiosos. Neste jogo, o botafoguense Carlito acabou roubando o protagonismo jogo. Isto porque, no último momento da dramática peleja o Vasco marcou um gol e o arbitro não deu. O jogo estava 3 a 2 em favor dos rubro-negros10. E este gol daria o empate para os Camisas Negras. O lance se deu num chute do ponta-direita Paschoal, que anos mais tarde declarou na Revista Placar: “Só perdemos aquele jogo por causa do Carlito Rocha. Eu fiz um gol quando faltavam nove minutos para terminar a partida e ele anulou, alegando que a bola havia entrado por cima numa abertura inexistente”11.

Para o Vasco foi três a três. Houve uma bola, entrou não entrou, Carlito Rocha deixou a partida continuar, o vascaíno jurando por Deus que a bola tinha entrado, “eu vi com estes olhos que a terra há de comer”12.

O fato é que Carlito Rocha não validou o tento do Vasco e este episódio se tornou uma polêmica histórica. Contudo, o gol não validado deu a vitória para o Flamengo. Dentro de campo, segundo José da Silva Rocha, os jogadores do Vasco deixaram o gramado cumprimentado seus adversários. Ou seja, não existiu confusão.

A derrota para o Flamengo, no estádio do Fluminense, com o gol anulado por um botafoguense, não impediu que o Vasco se sagrasse campeão. A taça viria (após duas vitórias consecutivas contra o América e Fluminense) no dia 12 de agosto de 1923 no jogo contra o São Cristóvão no estádio de General Severiano, os Camisas Negras estavam perdendo por 2 a 0. Mas, com gols de Ceci (um) e de Negrito (dois) viraram o jogo no segundo tempo para 3 a 2. Uma vitória maiúscula com o signo da virada, uma das marcas históricas do Vasco.

Entretanto, o caminho dos Camisas Negras não foi somente de louros. O Vasco sentiu na pele com o preconceito social, racial e com o anti-lusitanismo daquele tempo. Na entrevista, já referida, da Revista Placar, Paschoal relatou:

“Era uma coisa horrível. O mínimo que nos chamavam era de galego. Durante o jogo inteiro, os torcedores ficavam a nos ridicularizar, imitando voz de português e gritando ‘cadê os tamancos? Cadê os tamancos?’. No dia da nossa estréia na primeira divisão, contra o Andaraí, no campo do Botafogo, a hostilidade era tanta que nosso contramédio Bolão, não agüentando de raiva, chegou a propor isto: ‘Temos que dar com a cabeça na baliza, botar o coração pela boca, mas não podemos perder esse jogo’. E realmente não perdemos: empatamos de 1 a 1. No jogo seguinte, vencemos o América por 2 a 1”13.

Mas, voltando ao cerne da questão, o clássico Vasco e Flamengo do dia 8 de julho de 1923 de modo algum pode ser enquadrado na analogia criada por Mario Filho de um “Brasil x Portugal”. Isto não somente pelos jogadores vascaínos, os brasileiríssimos negros e brancos pobres de Morais e Silva. Não só. Mas, igualmente pela torcida que os Camisas Negras já representava naquele tempo. O Vasco da juventude comerciaria, o forte do quadro social do clube14, dos operários das serralherias a vapor, dos empregados e empregadores do comércio de secos e molhados. O Vasco que misturou imigrantes portugueses ricos e pobres, operários e negros brasileiros. Este Vasco que arrastava multidões e lotava as arquibancadas, sem dúvida, foi genuinamente o povo em 1923. Logo, o Flamengo, por sua vez, era um dos representantes da elite branca que se forjou sob os braços do Império dos Bragança.

O torcedor do Flamengo tinha ainda mais raiva do Vasco que o do Fluminense. O torcedor, o jogador, tudo. O jogador, então, achava até que se sujava jogando contra o time do Vasco15.

De tal maneira, outro ponto precisa ser melhor investigado, parte significativa dos pesquisadores e escritores de futebol, afirmam que a rivalidade entre Vasco e Flamengo teve seu ponto de partida no remo, sobretudo no período precedente dos dois clubes ingressarem no futebol. Porém, estou convencido que essa afirmação é totalmente insuficiente para explicar a grandeza da rivalidade entre vascaínos e flamenguistas.

Mario Filho chega a dizer que, até o ingresso do Vasco na primeira divisão do futebol, os rubro-negros encarnavam nas regatas os associados portugueses do Vasco com a piada “entra Basco que meu marido é sócio”. Tenho a intuição que a gozação ficava mais restrita entre os pequenos círculos rubro-negros de então do que outra coisa.

A verdade é que, mesmo com as rixas clubísticas e conflitos de cunho segregacionista nos bastidores da federação de remo e o Vasco, como afirma a dissertação “A consolidação do Club de Regatas Vasco da Gama (1898-1906)” de Walmer Peres Santana, foi o clube que mais sofreu com essa orientação, tendo parte de seus remadores (ligados ao comércio) excluídos das competições por conta de sua condição social, embora isto seja um fato documentado com o carimbo da “Comissão de Syndicancia” da federação (com voto favorável do Flamengo), a fidalguia primava entre os clubes náuticos nas primeiras décadas do século XX e a relação das agremiações coirmãs, mesmo no ato das competições, se dava em maior amistosidade. Isto é tão assim que o Vasco em 1914, ano do primeiro tricampeonato do clube, emprestou para o Clube de Regatas do Flamengo a embarcação Pereira Passos. Esse episódio sui generis ocorreu devido a pelo menos três fatores determinantes:

·         A adoção da Lei “hors-concus”. De acordo com essa nova regra adotada na federação de remo, todos os remadores que tivessem dois ou mais títulos de campeão estariam excluídos do campeonato seguinte. Portanto, a nova Lei excluía os remadores vascaínos, bicampeões de 1912 e 13. O golpe “hors-concus” tinha como objetivo deter a seqüência de títulos do Vasco, do Club de Natação e Regatas Santa Luzia, do Gragoatá e do Boqueirão do Passeio.

·         O Flamengo não vinha bem nas competições de remo e seus dirigentes fizeram um apelo ao Vasco para que lhe “emprestasse o Pereira Passos”. Essa embarcação vascaína, devido ao corte da Lei “hors-concus”, vinha sendo utilizada por remadores juvenis do clube. Assim sendo, o presidente vascaíno Alfredo Rebello Nunes concordou com a solicitação flamenga e, com isso, por duas semanas a sede de Santa Luzia foi freqüentada por remadores do Flamengo treinando na yoles de oito remos Pereira Passos. De tal maneira, os rubro-negros tripularam uma embarcação do Vasco da Gama numa regata oficial do campeonato de 1914. E, curiosamente, “por pouco não arrebataram o título de campeão do oito favorito do Guanabara”16.

·         Naquele momento o Flamengo não era, nem de longe, o principal rival do Vasco. A maior rivalidade daquele tempo nas regatas era entre os clubes vizinhos do Centro da Cidade, que começavam a disputar título após título. Até 1914, o maior vencedor do remo era o Vasco com 5 (cinco) títulos. O Santa Luzia Natação e Regatas tinha 3 (três) e o Boqueirão do Passeio 2 (dois). O niteroiense Gragoatá ostentava 4 taças, o Botafogo e o Club Internacional de Regatas possuíam 1 (um) título cada. Enquanto isso, no número 22 da Praia do Flamengo, os rubro-negros não possuíam nenhum título. Portanto, para o presidente vascaíno Alfredo Rebello Nunes não havia problema o Vasco da Gama estender a mão ao clube coirmão de menor expressão nas regatas.

Quer dizer, o Vasco era uma potência no remo. O clube com o maior número de títulos. O primeiro tricampeão. E não era só isso, o Vasco também era o clube que reunia pessoas que não só praticavam a modalidade, mas que igualmente acompanhavam o clube em dias de regatas. Ou seja, torcedores. A maioria dos clubes de remo não tinha essa característica. Em regra, o que se via, eram os membros das próprias agremiações e seus familiares acompanhando os atletas que iram competir. O caso do Vasco, já nos primeiros anos de competição, foi diferente. O Vasco reunia o maior número de associados, fazia piqueniques comemorativos, possuía grupos de carnaval e seus eventos desportivos e sociais sempre concentrou um grande número de adeptos. No mesmo período, o Clube de Regatas do Flamengo, como seus próprios historiadores afirmam, era a “República Paz e Amor”, um casarão de dois pavimentos na Praia do Flamengo, com um punhado de associados residindo em seu interior e fazendo travessuras na vizinhança.

No livro Histórias do Flamengo, Mario Filho afirma: “A grandeza do Vasco vem de 1923, no ‘Entra Basco que o meu marido é sócio’, do ‘Basco é uma putência’, das piadas do Flamengo em cima do português”17. Ainda segundo Mario Filho, antes do tempo do futebol bastava surgir uma

iole do Vasco, na frente ou atrás, e uma voz afalsetada gritava logo: “Entra Basco que o meu marido é sócio”. O português não gostava, mas quem estava envolta ria. Já não estava mais rindo em futebol, porque o Vasco entrava mesmo18.

É preciso rechaçar veementemente o que Mario Filho afirma de modo parcial e panfletário. É inadmissível essa simplificação distorcida da história. Podemos considerar que a piada anti-lusitana relatada incansavelmente por Mario Filho em seus escritos ocorreu, mas de modo algum é possível crer que a mesma teve o poder de transformar fraqueza em força e força em fraqueza. Tal hipótese não tem cabimento diante da correlação de forças dos clubes e da diferença numérica de seus correligionários nos dias de regatas e nos campos de futebol em 1923.

Todavia, a indagação que fica é por que Mario Filho relata abundantemente a piada rubro-negra anti-Vasco? Em primeiro lugar é importante pontuar que Mario Rodrigues Filho nasceu em 1908. Assim sendo, em 1914 ele tinha 6 anos de idade. Em 1923, ele tinha 15 anos. De tal maneira, seguramente, Mario Filho não presenciou os acontecimentos desse período de modo abrangente. Portanto, o grosso de sua produção, de meados dos anos vinte para baixo, foi apoiado em relatos de fontes que apresentaram uma narrativa dos acontecimentos. Um olhar parcial de um lado da história. Ora, se é parcial, não se pode considerar como universal. Acontece que durante muitos anos, os escritos de Mario Filho se transformaram numa espécie de “universalização da verdade na literatura do futebol brasileiro”. E como não é segredo, basta interpretar, a produção de Mario Filho se transformou na base da narrativa flamenga.

Contudo, Mario Filho tem um grande serviço prestado ao desporto nacional. Não restam dúvidas que ele foi o maior cronista esportivo brasileiro de todos os tempos e devo acrescentar que Mario Filho foi feliz na essência da abordagem do racismo no futebol brasileiro. Mas, essa qualidade não anula que parte de sua produção jornalistica e literária teve cunho parcial.

Assim sendo, até 1923 a relação entre Vasco e Flamengo se regia sem grandes choques de rivalidade. Já havia dado o exemplo de 1914 no remo, outro exemplo categórico é que quando ainda não havia seção de futebol no Vasco, os associados do clube acabavam torcendo de modo efêmero para outros clubes no futebol, inclusive o Flamengo. O ex-presidente do Vasco, José da Silva Rocha, garante:

Entre os vascaínos era cada dia maior o desejo de aderir à popular modalidade e intervir nas competições oficiais. Receio, porventura infundado da reação dos homens do remo, entravava o que poderíamos denominar de “revolução futebolística”. Aos domingos, após os jogos de campeonato muitos sócios desciam dos bondes da chamada empresa Jardim Botânico e reuniam-se na sede de Santa Luzia comentando as peripécias dos encontros que tinham ido assistir. Alguns torciam pelo Fluminense, outros pelo Botafogo, pelo América, pelo Flamengo… Os encontros eram aliciantes. Não se podia assisti-los sem tomar partido por um dos grupos em luta19.

Portanto, a rivalidade com R maiúsculo entre Vasco e Flamengo nasceu no futebol. Tendo o dia 8 de julho de 1923 como data de registro. É neste jogo que de modo cristalino são plantadas as sementes que constituíram as raízes da maior rivalidade do futebol brasileiro. Não é por menos que essa partida se “cacifou” como um episódio antológico do futebol narrado em livros, teses, artigos, notas, além de alimentar polêmicas no seio dos debates entre estudiosos do tema.

No clássico de 8 de julho de 1923 é possível compreender a síntese do futebol de toda uma época. Ali estava contido o elitismo aristocrático, o racismo institucionalizado, o anti-lusitanismo e a defesa do amadorismo como o enlace da pureza do jogo. Do outro lado estava um clube que era em si mesmo a negação, em forma e conteúdo, do modelo predominante. E foi exatamente naquele Vasco e Flamengo, nas Laranjeiras, que o choque entre os antagonismos se deu literalmente.

Por isso, é determinante esmiuçar esse episodio. Segundo Mario Filho, a contribuição do Vasco em 1923 foi tão original quanto o Sul-americano de 1919 para o futebol brasileiro. Para ele o sul-americano encerrava uma época no futebol e o campeonato conquistado pelo Vasco em 23 começava outra.

A ascensão do Vasco para a primeira divisão da velha Metropolitana, o que se deu em 23, teve para o football carioca uma importância semelhante à conquista do campeonato sul-americano de 19 pelo scratch brasileiro. Há de parecer exagero a comparação entre dois acontecimentos que, aparentemente, nada têm de comum. Em 19, porém, se encerrava uma época do football carioca, em 23 se abria outra. O que caracterizou 19 como 23 foi o aumento súbito do público que assistia aos matches. De repente, os campos se tornaram pequenos. Nem mesmo o estádio do Fluminense, construido para 19 e 22, chegava para as multidões que não queriam deixar de sentir as emoções dos campeonatos. O que provocou o primeiro transbordamento dos campos foi o sul-americano de 19, em que o football brasileiro se empenhou tão brilhantemente. O segundo foi a ascensão do Vasco para a primeira divisão da velha Metro20.

A massificação dos acanhados estádios dos anos 1920 tornou as torcidas mais heterogêneas. Com poucas exceções até 1919 ir a um jogo da 1ª divisão do futebol carioca era um passatempo das “boas famílias”, um programa de depois da missa nos dias de domingo. A torcida era seleta e elegante, as senhoras e as moças usavam leques, belos chapéus floridos e vestidos longos. Os rapazes e senhores de terno, gravata e chapéus com fitinhas nas cores do time. Muitos na arquibancada eram sócios de um clube. Socialmente o que havia nos estádios, havia nos glamorosos bailes do Fluminense e nas festas do Botafogo.

A homogeneidade social das arquibancadas era o retrato da belle époque carioca. Dentro de alguns estádios, como o das Laranjeiras, havia a geral, um espaço apartado de tamanho e qualidade inferior reservado para o setor mais popular. Ali se reunia o torcedor sem terno e gravata, sem chapéus, sem títulos de sociedade. De tal modo, os estádios de futebol, em alguma medida, reproduziam a segregação social vigente na República Velha.

Em 1923 ocorre a quebra desse paradigma. Pela primeira vez na 1ª divisão do futebol carioca uma multidão “policlassista” passa a acompanhar de modo decidido um clube, o Vasco da Gama. Esse tipo de fenômeno até então só havia ocorrido com o selecionado brasileiro no Sul-Americano de 1919.

E para o jogo vieram portugueses até do Pará. O Vasco vencendo, vencendo (…). E eles chegavam de navio, de trem. Os hotéis cheios de portugueses que nunca tinham visto futebol na vida deles. Foi essa gente toda que encheu o estádio do Fluminense, que nem enchera completamente no Sul-Americano e que se pensava que nunca iria encher. Em 23 o estádio do Fluminense era um Maracanã, sem exagero. (…) Quem não era português torcia para o Flamengo21.

A massificação do público nos estádios foi acompanhada pelo grau de polarização das torcidas, algo novo na  1ª divisão naquele tempo. Tudo isso somado provocou uma inevitavelmente e abrupta mudança de comportamento dos torcedores dentro e fora das arquibancadas.

Outro aspecto que vale reforçar a reflexão é o seguinte: Mario Filho afirma: “quem não era português torcia para o Flamengo”. Se considerarmos a descrição de Mario Filho como verdadeira, então podemos considerar que esse episódio forjou a primeira torcida “arco-íris” que se tem registro no futebol brasileiro. Estou convencido que esse fenômeno ocorreu. Mas, de certo modo, dos dois lados. Isso porque pelo lado do Flamengo, como veremos nas notas a seguir, se agregou torcedores e associados de clubes que competiam na 1ª e na 2ª divisão. Pelo lado do Vasco, para além de sua grande torcida, certamente muita gente na arquibancada que foi apontada como português, provavelmente era tão brasileira quanto a cachaça. Isso por quê? Porque essa era a tendência de crescimento da torcida vascaína nos anos 1920. A cada jogo, a torcida Almirante ganha mais adeptos. Portanto, se muita gente se somou na torcida anti-Vasco nas Laranjeiras, por outro lado, muita gente também que não era (ainda) vascaína, foi ao estádio para torcer pelo time que surpreendia a todos por sua originalidade e pelo grande futebol dentro de campo. Não é à toa que naquela multidão os pró-Vasco eram maiores que os anti-Vasco.

Isto é, a força do Vasco era tamanha que conquistava e até “roubava” torcedores de outros clubes por sua característica singular, não por nada que Orlando Cunha e Fernando Valle, no livro “Campos Salles, 118. 2º Edição”, irão registrar que a partir de 1923, o América FC deixa de ter a “preferência maciça (…) entre nossos irmãos lusitanos. Até essa data, o América – sem ser propriamente o clube da colônia, como veio a ser em seguida, o grêmio
cruzmaltino – era aquele que contava com maior número de portugueses em sua torcida”. Por outro lado, negros e mestiços que passaram a acompanhar o futebol no Rio de Janeiro já haviam tido a experiencia de torcer pelos gols e o talento de Gradin, jogador negro da Seleção Uruguaia que brilhou no Campeonato Sul-Americano de 1919 no Brasil. Ou seja, em certa medida, o negro Gradin, mesmo jogando pelo Uruguai, se transformou em uma referência positiva para os que se viam como ele. Por isso, não é por coincidência que brotou no futebol brasileiro jogadores denominados de “Gradin” por toda parte. Portanto, os Camisas Negras vascaínos foram uma espécie potencializada em multidões desse tipo fenômeno.

De tal maneira, é falsa a conotação que os cariocas e os brasileiros torceram contra o Vasco naquele dia. Ou melhor, naquele campeonato. Essa é uma narrativa inventada para contar a história ao gosto de determinado direcionamento e, assim, distorcer os acontecimentos. Mais ainda, o Vasco já em 1923 não era um elemento exótico no meio desportivo. O clube era o maior vencedor do remo. Esporte mais popular do Rio de Janeiro até o final dos anos 10. E seguiu tendo a atenção do público mesmo sendo ultrapassado pelo futebol como esporte predileto da maioria. Ou seja, grande parte da população carioca viu com bons olhos o triunfo do Vasco e não o contrário, conforme Mario Filho deixa nas entrelinhas.

Contudo, o resultado adverso para os Camisas Negras fez com que o carnaval fosse da torcida “arco-íris” pró-Flamengo. É nesse contexto que ocorre a mítica briga de torcidas entre Vasco e Flamengo no dia 8 de julho de 1923.

Sobre o episódio Mario Filho em Histórias do Flamengo irá relatar que o confronto entre os torcedores iniciou já nas arquibancadas. Segundo ele havia muito mais vascaínos que flamenguistas naquele jogo. Por isso, a turma da garagem e do Café Rio Branco estudou o estádio do Fluminense como um mapa de guerra.

“Todos os lugares estratégicos foram ocupados por gente, do Flamengo, de pá de remo embrulhada em Jornal do Brasil. Vasco!, gritava o português e levava a pá de remo na cabeça. Brigas pipocavam aqui e acolá”22.

Entretanto, segundo o livro Flamengo e Vasco o Clássico dos milhões, tal situação nas arquibancadas das Laranjeiras não ocorreu. Para os autores, após um minucioso estudo sob os jornais da época, não seria possível sustentar a versão da “tal surra que seus adeptos [do Flamengo] deram nos torcedores adversários com pás de remo que entraram nas arquibancadas do Fluminense disfarçados por folhas de papel”23.

Na verdade o problema ocorreu do lado de fora do estádio. Quando acabou o jogo, começou o carnaval dos vencedores gozando a torcida do Vasco. Os rubro-negros e torcedores de outros clubes organizaram um cortejo com automóveis, o itinerário foi: Praia do Flamengo; Gloria; Lapa; Mem de Sá; Evaristo da Veiga; Avenida Rio Branco; Praça Onze. Nos pontos tradicionais que aglomeravam vascaínos como o Bar e Restaurante A Capela, na Lapa, e a Cervejaria Vitória, na Praça Onze, houveram brigas e bombas.

De madrugada um grupo de torcedores anti-Vasco, não só rubro-negros, penduraram um tamanco de dois metros e meio na porta da sede do Vasco em Santa Luzia. O tamanco era uma espécie de estandarte com formato do calçado que ficava em exposição na porta de uma tamancaria da Rua do Catete. Os torcedores inflamados retiraram o estandarte da loja e penduraram na sede do Vasco. Uma ação provocativa com todos os traços anti-lusitanos.

Para os acontecimentos descritos acima há registros confiáveis que garantem a veracidade dos fatos. José da Silva Rocha afirma:

Contam crônicas que registraram-se cachações e correrias (…)

Na noite desse acontecimento cuja repercussão transcendeu os limites da vida normal dos desportos para interessar toda a cidade pois afinal interrompera-se a quase fenomenal trajetória do team do Vasco em sua primeira temporada entre os grandes clubes, o bairro da Lapa ganhou colorido novo e fervilhante. A massa de entusiastas adversários que formaram grupos “gozadores” dos vascaínos que sempre de bom apetite após as vitórias na tradicional “A CAPELA” festejavam entre suculentos sanduiches e copos de delicioso alvaralhão procurou o local para desforra de tanto tempo de “empafia” vascaina24.

Os jornais da época e, até mesmo, sócios rubro-negros, condenaram a “incivilidade dos torcedores”. Veja a nota de um sócio do Flamengo no jornal O Paiz, edição de 11 de julho de 1923.

Como sócio e “torcedor”, do glorioso C.R. Flamengo, muito me consternou tal noticia, visto saber de antemão que a maior parte desses vagabundos eram fervorosos adeptos do Vila Isabel F.C e Andarahy A.C., que contentes com o feito da briosa equipe flamenga, não puderem passar sem offender o pavilhão do C.R Vasco da Gama,e, em uma explosão de jacobinismo.

Portanto, toda a mitologia desses episódios, principalmente a piada do “entra Basco que meu marido é sócio”, o “Brasil x Portugal” e “das pás de remo” narradas por Mario Filho durante trinta anos a frente do Jornal dos Spots e em sua grande produção literária, não apresenta outra fonte digna de nota que não seja si próprio. Assim sendo, uma única versão, mesmo que absurda, passou valer como uma espécie de “verdade” consentida sem aparente oposição através da autoridade de Mario e da força superestrutural de suas publicações que foram massificadas durante um largo período.

Todavia, para entender melhor esse panorama, nitidamente envolvendo rivalidade de torcidas, busquei um especialista no tema para analisar criticamente alguns episódios que colocam uma cunha vexatória na torcida do Vasco em um ano de ouro para o clube. Por isso, diante do grau de importância que Mario Filho dá aos casos, ouvi um pesquisador experiente no recorte histórico das torcidas se demonstra decisivo. A partir desse contexto entrevistei o historiador Jorge Luiz Medeiros Braga25.

Isto posto, vamos a narrativa de Mario Filho, direto no episodio das pás de remo, uma vez que considero que a questão envolvendo a piada do “entra Basco que meu marido é sócio” oriunda do remo e a analogia “Brasil x Portugal” nas Laranjeiras já foram respondidas nesse artigo:

Manda a verdade que se acentue: muito mais vascaínos do que rubro-negros. Só que o Rio Branco e a garagem do Flamengo tinham estudado como num mapa de guerra o estádio do Fluminense, sobretudo as arquibancadas, mais perto do gramado. Todos os lugares estratégicos foram ocupados por gente, do Flamengo, de pá de remo embrulhada em Jornal do Brasil. Vasco!, gritava o português e levava a pá de remo na cabeça. (…) bombas no Capela, o Rio Branco noturno do Vasco (…) Cervejaria Vitória, onde os vascaínos gostavam de comemorar triunfos26.

Jorge Medeiros comenta:

“Em primeiro lugar, se o estádio estava superlotado e naquela época não havia uma divisão clara de torcidas por coloração das agremiações. A hipótese de pipocar brigas eventuais e fragmentadas é mais do que comum. A verdade é que tinha toda uma rivalidade que estava em jogo naquela disputa ali, aflorando os sentimentos.

A torcida do Vasco tinha muita disposição para as brigas, porque aquilo era muito comum na divisão [série B] que o Vasco vinha. Então os vascaínos estavam habituados em participar de brigas. Até mesmo Leandro, no que Mario Filho se refere de separar lugares estratégicos, a torcida do Vasco já fazia isto direto. Nesse relato do Tavares do grupo vascaíno “Lasca o Pau” justamente eles tinham essa conduta entre eles, tinham códigos, portanto, a torcida do Vasco já fazia isto há muito tempo. De tal maneira, essa versão é um completo absurdo, no contexto e na forma apresentada. Pelo seguinte, uma coisa é um flamenguista ou mais de um flamenguista bater isoladamente num vascaíno. Outra coisa foi o mito que se criou em torno das “pás de remo” entre as torcidas. E esse é o ponto. Porque, em geral a torcida do Vasco jamais apanharia da torcida do Flamengo naqueles anos. Se você pesquisar os recortes dos jornais nos anos seguintes quando tinha jogo com o Flamengo, a preocupação maior era dos rubro-negros se defenderem da torcida do Vasco. Ou seja, é o oposto. É evidente que a torcida do Vasco naquele momento era muito mais pré-disposta ao confronto, a autodefesa e a prática de dominar territórios. Tudo isto não era habitual na torcida do Flamengo”.

Nos artigos preliminares para o livro “100 anos da Torcida Vascaína”, escritos por Jorge Medeiros é possível compreender de modo didático a formação da torcida do Vasco nos campos do subúrbio e o surgimento do grupo de autodefesa “Lasca o Pau” em 1917.

Também começava a se formar um grupo aguerrido para defender os torcedores vascaínos nos jogos em que a torcida adversária quisesse intimidar os nossos adeptos. Era o grupo do “Lasca o Pau”, formado por remadores e lutadores dispostos a defender nosso pavilhão no braço. Em crônica no Jornal dos Sports nos anos 1950, o jornalista Álvaro Nascimento relembra os nomes de alguns deles: Rafael Verri, Aquiles Astuto, Adão Brandão e Edgar Lody Batalha.

Em julho de 1963, por ocasião da morte de Victor Alves Moreira  (conhecido como Sinhá), o amigo e cronista Álvaro Nascimento exalta um dos responsáveis pela formação da Turma da “Linha de Frente” entre os anos de 1916-1922, composta por aguerridos torcedores vascaínos dispostos a todo e qualquer sacrifício em prol do clube. O jornalista escreve uma crônica em sua homenagem, ressaltando a formação deste grupo de abnegados torcedores que lutavam de corpo e alma para o sucesso do time de futebol e da segurança da torcida nos estádios da cidade: “as novas gerações vascaínas desconhecem quão grande foi o esforço, a dedicação de homens modestos para entregar-lhes esse Vasco poderoso de nossos dias … um punhado de dedicados vascaínos que, com sol ou chuva, nos campos suburbanos, constituía a ‘policia de choque’ a dar garantia e segurança as nossas representações”.

O futebol nessa época já tinha seus adeptos, a torcida do Vasco ainda com meia dúzia de gatos pingados, já começava acompanhar o time. Como fato inédito, na época, quem chefiava essa Torcida Organizada era Dona Josefa Pereira (primeira Chefe de Torcida do Vasco), irmã Manuel Pereira, proprietário de uma casa de Tecidos. Como brigava a Dona Josefa Pereira.

Novamente em suas lembranças, o jornalista do Jornal dos Sports Álvaro Nascimento, recorda 50 anos depois, o que era o desafio de torcer naqueles campos da Segunda Divisão sem as mínimas condições de segurança e os nomes dos pioneiros das arquibancadas: “naquele tempo não havia o Estádio Mario Filho (Maracanã) com dois mil policiais que garantiam a ordem. As brigas eram no Campo do Esperança, no Marco VI em Bangu, no Campo do Jardim Zoológico ou do Palmeiras, na Quinta da Boa Vista. São considerados paladinos da Torcida Vascaína, a maioria já falecidos, os seguintes Vascaínos, D. Josefa Pereira e seu irmão Manuel Pereira, Joaquim Carneiro Dias, Baltar Junior, Dr Castro Menezes, Carlos Medalhas, Albertino Moreira Dias, Ouriço, Francisco Costa, Sinhá, Fava, Zapelli, Dom Quixote”.

Seguindo ainda o trabalho de pesquisa de Jorge Luiz Medeiros Braga, disponibilizamos um depoimento do ex-dirigente do Vasco, Antonio Tavares Rodrigues sobre o grupo “Lasca o Pau”:

Em depoimento a João Antero de Carvalho para o livro Torcedores de Ontem e de Hoje (1968), o torcedor Antonio Tavares Rodrigues, um português que chegou ao Brasil em 1915 e se tornaria presidente do clube nos anos 1940, relembra como os torcedores se preparavam para as partidas em campos adversários e a possibilidade de confrontos: “quando o Vasco ainda não pertencia a primeira divisão formou o chamado “grupo do lasca o pau”, verdadeiro “choque de força” que repelia as alcunhas de “galego” e “mondrongo”, aquele tempo assacadas amiúde contra os torcedores”. Tavares além de competir no water polo pelo Vasco também era atleta do remo e participava das lutas nas ruas e arquibancadas. Ele relembra: “nós nos distribuíamos nas arquibancadas aos grupos e quando nos chamavam pelos apodos, aquele que estivesse mais perto ia “cobrindo” o ofensor até que outros choques chegassem ao local do desafio”.27

A formação da torcida do Flamengo foi oposta a do Vasco em todos os sentidos, isto fica cristalino na passagem do livro Renato Souza Coutinho, “Um Flamengo grande, um Brasil maior”:

O Flamengo sofria represálias em estádios que hoje são ocupados sem grandes dificuldades pela torcida nos dias de jogos. Em 1932, no bairro de Olaria, o Flamengo disputou uma partida como visitante e não dispensou críticas aos assistentes locais. Flamengo perde em Olaria e volta reclamando, estampava a manchete: As reclamações de Rubens, capitão do time, deixam claro que ainda no início da década de 1930, até mesmo o bairro de Olaria, próximo ao centro da cidade, representava um domínio distante da sua casa28.

Diante de tudo que foi apresentado, fica nítido que as raízes dessa rivalidade estão fincadas no gramado e, ao mesmo tempo, estão distante das narrativas seletivas que buscaram distorcer a imagem – para o bem e/ou para o mal – dos protagonistas do Clássico dos Milhões. Todavia, é preciso sublinhar que a mística ao redor de Vasco e Flamengo teve seu ponto de partida nos duelos antológicos de 1923 e, a partir dessa marca, qualquer outra competição independentemente da modalidade envolvendo os dois clubes se tornou substancialmente distinta. Quer dizer, a característica da rivalidade oriunda do remo mudou significativamente. Tornou-se algo com DNA próprio, surgida de elementos concretos a olho nu, que envolvia não só o fator desportivo, mas agregava contradições de raça, classe e etnia do seio da sociedade brasileira na oligárquica Primeira República. Não é à toa que o Flamengo foi um dos agentes principais que subscreveram e sustentaram politicamente os pontos elitistas e racistas da AMEA que foram negados categoricamente pelo CR Vasco da Gama na Resposta Histórica assinada pelo presidente José Augusto Prestes. Por todo esse poderoso histórico concentrado no biênio de 1923-1924, o jogo entre Vasco e Flamengo é sempre carregado de expectativa, tensão, brio, paixão e nervos a flor da pele. De tal maneira, a natureza da rivalidade entre Vasco e Flamengo se traduz de modo original porque um é a antítese do outro, diferente, portanto, das rivalidades fabricadas entre compadres em uma escrivaninha. Essa rivalidade que surgiu entre antagonistas segue mais viva do que nunca, independentemente do momento de cada time nas competições. Por tudo isto, o Clássico dos Milhões, sem sombra de dúvidas, deve ser considerado do ponto de vista histórico como o maior clássico do futebol brasileiro.

Notas

1 Antes das épicas partidas de 1923, ocorreu um jogo entres os times de Vasco e Flamengo pelo Torneio Início de 1922. Os rubro-negros superaram os Camisas Negras nessa ocasião por 1 tento a 0.

2 José da Silva Rocha foi presidente do Vasco da Gama em 1962. Tornou-se o maior historiador do clube ao produzir a obra VASCO DA GAMA: Histórico (1898 – 1923), publicado em 1975. Rochinha pretendia lançar o volume 2 e 3 como continuação do primeiro livro. No entanto, veio a falecer (1981) antes de conseguir concretizar esse projeto. Alguns de seus escritos foram publicados no jornal A Noite na coluna “Um Cinqüentenário Desportivo” (1948). José da Silva Rocha teve sua vida devotada ao Vasco, em 1912 já participava da vida social do clube. Em 1915 se torna sócio geral, passou por todas as etapas do quadro associativo, sócio remido, benemérito e grande benemérito. Foi timoneiro, praticou pólo-aquático, tênis, futebol (terceiro time de 1922). Um homem ativo da vanguarda vascaína em muitos episódios decisivos da vida desportiva e social do Vasco da Gama.

3 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 335.

4 Mário Polo presidiu o Fluminense de 29 de abril de 1940 a 05 de maio de 1941.

5 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 335.

6 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo x Vasco – O Clássico de Milhões. Relume Dumará. 1999. p. 30.

7 FILHO, Mario. Histórias do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32.

8 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo x Vasco – O Clássico de Milhões. Relume Dumará. 1999. p. 31.

9 Carlito Rocha foi praticamente tudo no Botafogo: jogador no inicio do século 20, técnico nos anos 30 e presidente de 1948 a 1951, o folclórico alvinegro é sem dúvida um dos maiores personagens da história do Botafogo.  

10 Os gols do Flamengo foram de Candiota, Nonô e Arlindo.

11 APUD BLANC, Aldir e MARQUES, José. Vasco A Cruz do Bacalhau. Ediouro. 2009.p.74.

12 FILHO, Mário. Histórias do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32

13 memoriavascaina.com (09/11/2019).

14 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 305.

15 FILHO, Mario. O Negro no Futebol Brasileiro. Mauad X. 2010. p. 141.

16 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.192

17 FILHO, Mário. Histórias do Flamengo. Mauad X. 2014. p. 41.

18 O Globo, Esportes. 5 de maio de 1996. p. 66.

19 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.195.

20 Idem. p. 330.

21 O Globo, Esportes. 5 de maio de 1996. p. 66.

22 FILHO, Mario. Histórias do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32.

23 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo x Vasco – O Clássico de Milhões. 1999. p. 32.

24 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama Histórico 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.330.

25 Professor de História, fez parte da equipe editorial do Jornal da Força Jovem Vasco de 1992-1995 e defendeu o Mestrado com o tema da “Origem das Torcidas Organizadas no RJ nos anos de 1940”.

26 COUTINHO, Renato Soares. Um Flamengo Grande, Um Brasil Maior. 2014. 7 Letras. p. 32/33.

27 BRAGA, Jorge Luiz Medeiros. 100 anos da Torcida Vascaína. 2017.

28 COUTINHO, Renato Soares. Um Flamengo Grande, Um Brasil Maior. 2014. 7 Letras. p. 37.


Leandro Fontes

Geógrafo, pesquisador e autor do livro Vasco: o clube do povo – uma polêmica com o flamenguismo (1923-1958).

Como citar

FONTES, Leandro Tavares. 100 anos do Clássico dos Milhões: A verdadeira origem da rivalidade entre Vasco e Flamengo. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 19, 2023.

Vasco x Flamengo Revista da Semana 1923