O primeiro clássico oficial1 no gramado entre Vasco e Flamengo se deu num domingo, dia 29 de abril de 1923, jogo valido pelo campeonato carioca. O Flamengo jogou em casa, naquele tempo o rubro-negro mandava seus jogos no modesto estádio da Rua Paysandu (campo de propriedade da família Guinle). O jogo foi extremamente concorrido, uma multidão se mobilizou para assistir a partida. Lembrando que naquela época não havia sequer transmissão de rádio. Cada pedaço da arquibancada foi disputado. A obra Club de Regatas Vasco da Gama Histórico 1898 – 1923, de José da Silva Rocha2, definiu essa partida como a nascente do “Jogo das Multidões” e que depois, nas décadas seguintes, iria se eternizar como o “Clássico dos Milhões”.
“Os portões tiveram de encerrar-se muito antes do
início do jogo principal. As vendas dos ingressos ainda não terminado o
encontro dos segundos teams tinham sido suspensas”3.
O Vasco vinha embalado. A torcida cruzmaltina
acompanhou a ascensão do time. A cada vitória, mais vascaínos compareciam nos
jogos seguintes. Assim foi contra o Flamengo, segundo Rocha, os vascaínos
assumiram o comando da torcida no campo da Rua Paysandu. Isto é, o Vasco tinha
maioria dos torcedores no estádio com mando de campo do rival.
Os Camisas Negras, como era chamado o Vasco, entrou em campo com: Nelson
da Conceição; Claudio; Leitão; Nicolino; Bolão; Arthur; Paschoal; Torteroli;
Arlindo; Ceci; Negrito. O arbitro que teve o privilégio de apitar o primeiro
clássico oficial foi Mário Polo (desportista ligado ao Fluminense FC que no ano
seguinte seria um dos algozes da imposição racista e elitista da AMEA
contra o Vasco da Gama)4. O jogo ocorreu com normalidade e o
Vasco venceu o adversário por 3 tentos a 1. Os gols dos Camisas Negras foram
marcados por Ceci (dois) e por Negrito (um).
“Ao trilar do apito foi impossível transitar nas ruas Paissandú
e Pinheiro Machado. Legiões de partidários do clube vencedor encheram de
cânticos e vivas todo o bairro de Laranjeiras. E na Lapa em frente á
tradicional Capela os comentários e manifestações tiveram aparência de comício”5.
O jornal Correio da Manhã destacou a comemoração vascaína:
“Até tarde da madrugada ouvia-se, de vez em quando, o
enthusiasmo e a alegria dos torcedores do club vencedor. Na sede náutica do
Vasco, em Santa Luzia, houve um animado reco-reco, sendo feita aos jogadores
uma carinhosa manifestação”6.
Conforme os fragmentos apontados acima a torcida do Vasco, após o jogo
fez um verdadeiro carnaval no trajeto Zonal Sul x Centro da Cidade. Um cortejo
com muita alegria, orgulho, cerveja e gozação. Uma manifestação espontânea, com
típicos traços de autenticidade carioca. Era o Vasco e sua torcida se
apresentando na elite do futebol brasileiro.
No dia 8 de julho ocorreu a segunda partida entre Vasco e Flamengo. Era
a terceira rodada do returno do campeonato. O Vasco estava imbatível, já havia
atropelado o América, Botafogo, Flamengo e Fluminense (todos em seus
respectivos estádios). Já se somavam oito vitórias consecutivas. Havia chegado
a hora do segundo match contra o Flamengo e desta vez o Vasco era o mandante do
jogo. Como o precário estádio da Rua Morais e Silva (Tijuca) foi vetado pela
Liga Metropolitana, a diretoria resolveu alugar o estádio das Laranjeiras,
campo do Fluminense, para mandar seus jogos oficiais naquele ano. Quer dizer, o
Vasco em seu primeiro ano na 1a divisão do campeonato carioca teve a ousadia de
alugar o, até então, maior estádio da Cidade para mandar seus jogos.
De tal modo, assim como no campo da Rua Paysandu, o estádio das
Laranjeiras também recebeu seu maior público. Uma multidão ocupou todos os
lugares das arquibancadas e da geral. Havia gente inclusive dentro do campo e
um número enorme de pessoas não conseguiram entrar no estádio devido sua
lotação. E “a verdade que se acentue: muito mais vascaínos do que rubro-negros”7.
Mais de 35 mil pessoas, sem exagero, enchiam as vastas
dependências do tricolor”, contou “O Imparcial”. “Jamais, nesta capital,
affluiu igual concurrência em jogos de football, nem mesmo durante os matches
do Sul-Americano. Não havia um único lugar no ground. Calculamos em cerca de 55
mil pessoas o número de espectadores verificado hontem”, garantiu o “Jornal do
Commércio”. “A partida assumiu a proporção de um vultuoso acontecimento, que
ultrapassou os limites do mundo sportivo, para interessar, fora desse âmbito, à
toda cidade. Não há positivamente exemplo, no Rio, de um facto ou de um match
que tenha despertado interesse tão vivo. Não conhecemos, francamente, na
história do football carioca uma competição que tivesse alardeado tão ruidoso
sucesso”, descreveu o “Correio da Manhã”8.
O arbitro da partida foi Carlos Martins da Rocha, o Carlito Rocha do
Botafogo9. Um personagem folclórico do
futebol carioca por seus traços exotéricos e supersticiosos. Neste jogo, o
botafoguense Carlito acabou roubando o protagonismo jogo. Isto porque, no
último momento da dramática peleja o Vasco marcou um gol e o arbitro não deu. O
jogo estava 3 a 2 em favor dos rubro-negros10. E este gol daria o empate para os
Camisas Negras. O lance se deu num chute do ponta-direita Paschoal, que anos
mais tarde declarou na Revista Placar: “Só perdemos aquele jogo por causa do
Carlito Rocha. Eu fiz um gol quando faltavam nove minutos para terminar a
partida e ele anulou, alegando que a bola havia entrado por cima numa abertura
inexistente”11.
Para o Vasco foi três a três. Houve uma bola, entrou
não entrou, Carlito Rocha deixou a partida continuar, o vascaíno jurando por
Deus que a bola tinha entrado, “eu vi com estes olhos que a terra há de comer”12.
O fato é que Carlito Rocha não validou o tento do Vasco e este episódio
se tornou uma polêmica histórica. Contudo, o gol não validado deu a vitória
para o Flamengo. Dentro de campo, segundo José da Silva Rocha, os jogadores do
Vasco deixaram o gramado cumprimentado seus adversários. Ou seja, não existiu
confusão.
A derrota para o Flamengo, no estádio do Fluminense, com o gol anulado
por um botafoguense, não impediu que o Vasco se sagrasse campeão. A taça viria
(após duas vitórias consecutivas contra o América e Fluminense) no dia 12 de
agosto de 1923 no jogo contra o São Cristóvão no estádio de General Severiano,
os Camisas Negras estavam perdendo por 2 a 0. Mas, com gols de Ceci (um) e de
Negrito (dois) viraram o jogo no segundo tempo para 3 a 2. Uma vitória
maiúscula com o signo da virada, uma das marcas históricas do Vasco.
Entretanto, o caminho dos Camisas Negras não foi somente de louros. O
Vasco sentiu na pele com o preconceito social, racial e com o anti-lusitanismo
daquele tempo. Na entrevista, já referida, da Revista Placar, Paschoal relatou:
“Era uma coisa horrível. O mínimo que nos chamavam era
de galego. Durante o jogo inteiro, os torcedores ficavam a nos ridicularizar,
imitando voz de português e gritando ‘cadê os tamancos? Cadê os tamancos?’. No
dia da nossa estréia na primeira divisão, contra o Andaraí, no campo do
Botafogo, a hostilidade era tanta que nosso contramédio Bolão, não agüentando
de raiva, chegou a propor isto: ‘Temos que dar com a cabeça na baliza, botar o
coração pela boca, mas não podemos perder esse jogo’. E realmente não perdemos:
empatamos de 1 a 1. No jogo seguinte, vencemos o América por 2 a 1”13.
Mas, voltando ao cerne da questão, o clássico Vasco e Flamengo do dia 8
de julho de 1923 de modo algum pode ser enquadrado na analogia criada por Mario
Filho de um “Brasil x Portugal”. Isto não somente pelos jogadores vascaínos, os
brasileiríssimos negros e brancos pobres de Morais e Silva. Não só. Mas,
igualmente pela torcida que os Camisas Negras já representava naquele tempo. O
Vasco da juventude comerciaria, o forte do quadro social do clube14, dos operários das serralherias a
vapor, dos empregados e empregadores do comércio de secos e molhados. O Vasco
que misturou imigrantes portugueses ricos e pobres, operários e negros
brasileiros. Este Vasco que arrastava multidões e lotava as arquibancadas, sem
dúvida, foi genuinamente o povo em 1923. Logo, o Flamengo, por sua vez, era um
dos representantes da elite branca que se forjou sob os braços do Império dos
Bragança.
O torcedor do Flamengo tinha ainda mais raiva do Vasco
que o do Fluminense. O torcedor, o jogador, tudo. O jogador, então, achava até
que se sujava jogando contra o time do Vasco15.
De tal maneira, outro ponto precisa ser melhor investigado, parte significativa
dos pesquisadores e escritores de futebol, afirmam que a rivalidade entre Vasco
e Flamengo teve seu ponto de partida no remo, sobretudo no período precedente
dos dois clubes ingressarem no futebol. Porém, estou convencido que essa
afirmação é totalmente insuficiente para explicar a grandeza da rivalidade
entre vascaínos e flamenguistas.
Mario Filho chega a dizer que, até o ingresso do Vasco na primeira
divisão do futebol, os rubro-negros encarnavam nas regatas os associados
portugueses do Vasco com a piada “entra Basco que meu marido é sócio”. Tenho a
intuição que a gozação ficava mais restrita entre os pequenos círculos
rubro-negros de então do que outra coisa.
A verdade é que, mesmo com as rixas clubísticas e conflitos de cunho
segregacionista nos bastidores da federação de remo e o Vasco, como afirma a
dissertação “A consolidação do Club de Regatas Vasco da Gama (1898-1906)” de
Walmer Peres Santana, foi o clube que mais sofreu com essa orientação, tendo
parte de seus remadores (ligados ao comércio) excluídos das competições por
conta de sua condição social, embora isto seja um fato documentado com o
carimbo da “Comissão de Syndicancia” da federação (com voto favorável do
Flamengo), a fidalguia primava entre os clubes náuticos nas primeiras décadas
do século XX e a relação das agremiações coirmãs, mesmo no ato das competições,
se dava em maior amistosidade. Isto é tão assim que o Vasco em 1914, ano do
primeiro tricampeonato do clube, emprestou para o Clube de Regatas do Flamengo
a embarcação Pereira Passos. Esse episódio sui generis ocorreu devido a pelo
menos três fatores determinantes:
·
A adoção da Lei “hors-concus”. De acordo com
essa nova regra adotada na federação de remo, todos os remadores que tivessem
dois ou mais títulos de campeão estariam excluídos do campeonato seguinte.
Portanto, a nova Lei excluía os remadores vascaínos, bicampeões de 1912 e 13. O
golpe “hors-concus” tinha como objetivo deter a seqüência de títulos do Vasco,
do Club de Natação e Regatas Santa Luzia, do Gragoatá e do Boqueirão do
Passeio.
·
O Flamengo não vinha bem nas competições de remo
e seus dirigentes fizeram um apelo ao Vasco para que lhe “emprestasse o Pereira
Passos”. Essa embarcação vascaína, devido ao corte da Lei “hors-concus”, vinha
sendo utilizada por remadores juvenis do clube. Assim sendo, o presidente
vascaíno Alfredo Rebello Nunes concordou com a solicitação flamenga e, com
isso, por duas semanas a sede de Santa Luzia foi freqüentada por remadores do
Flamengo treinando na yoles de oito remos Pereira Passos. De tal maneira, os
rubro-negros tripularam uma embarcação do Vasco da Gama numa regata oficial do
campeonato de 1914. E, curiosamente, “por pouco não arrebataram o título de
campeão do oito favorito do Guanabara”16.
·
Naquele momento o Flamengo não era, nem de
longe, o principal rival do Vasco. A maior rivalidade daquele tempo nas regatas
era entre os clubes vizinhos do Centro da Cidade, que começavam a disputar
título após título. Até 1914, o maior vencedor do remo era o Vasco com 5
(cinco) títulos. O Santa Luzia Natação e Regatas tinha 3 (três) e o Boqueirão
do Passeio 2 (dois). O niteroiense Gragoatá ostentava 4 taças, o Botafogo e o
Club Internacional de Regatas possuíam 1 (um) título cada. Enquanto isso, no
número 22 da Praia do Flamengo, os rubro-negros não possuíam nenhum título.
Portanto, para o presidente vascaíno Alfredo Rebello Nunes não havia problema o
Vasco da Gama estender a mão ao clube coirmão de menor expressão nas regatas.
Quer dizer, o Vasco era uma potência no remo. O clube com o maior número
de títulos. O primeiro tricampeão. E não era só isso, o Vasco também era o
clube que reunia pessoas que não só praticavam a modalidade, mas que igualmente
acompanhavam o clube em dias de regatas. Ou seja, torcedores. A maioria dos
clubes de remo não tinha essa característica. Em regra, o que se via, eram os
membros das próprias agremiações e seus familiares acompanhando os atletas que
iram competir. O caso do Vasco, já nos primeiros anos de competição, foi
diferente. O Vasco reunia o maior número de associados, fazia piqueniques
comemorativos, possuía grupos de carnaval e seus eventos desportivos e sociais
sempre concentrou um grande número de adeptos. No mesmo período, o Clube de
Regatas do Flamengo, como seus próprios historiadores afirmam, era a “República
Paz e Amor”, um casarão de dois pavimentos na Praia do Flamengo, com um punhado
de associados residindo em seu interior e fazendo travessuras na vizinhança.
No livro Histórias do Flamengo, Mario Filho afirma: “A grandeza do Vasco
vem de 1923, no ‘Entra Basco que o meu marido é sócio’, do ‘Basco é uma
putência’, das piadas do Flamengo em cima do português”17. Ainda segundo Mario Filho, antes
do tempo do futebol bastava surgir uma
iole do Vasco, na frente ou atrás, e uma voz
afalsetada gritava logo: “Entra Basco que o meu marido é sócio”. O português
não gostava, mas quem estava envolta ria. Já não estava mais rindo em futebol,
porque o Vasco entrava mesmo18.
É preciso rechaçar veementemente o que Mario Filho afirma de modo
parcial e panfletário. É inadmissível essa simplificação distorcida da
história. Podemos considerar que a piada anti-lusitana relatada incansavelmente
por Mario Filho em seus escritos ocorreu, mas de modo algum é possível crer que
a mesma teve o poder de transformar fraqueza em força e força em fraqueza. Tal
hipótese não tem cabimento diante da correlação de forças dos clubes e da
diferença numérica de seus correligionários nos dias de regatas e nos campos de
futebol em 1923.
Todavia, a indagação que fica é por que Mario Filho relata
abundantemente a piada rubro-negra anti-Vasco? Em primeiro lugar é importante
pontuar que Mario Rodrigues Filho nasceu em 1908. Assim sendo, em 1914 ele
tinha 6 anos de idade. Em 1923, ele tinha 15 anos. De tal maneira, seguramente,
Mario Filho não presenciou os acontecimentos desse período de modo abrangente.
Portanto, o grosso de sua produção, de meados dos anos vinte para baixo, foi
apoiado em relatos de fontes que apresentaram uma narrativa dos acontecimentos.
Um olhar parcial de um lado da história. Ora, se é parcial, não se pode
considerar como universal. Acontece que durante muitos anos, os escritos de
Mario Filho se transformaram numa espécie de “universalização da verdade na
literatura do futebol brasileiro”. E como não é segredo, basta interpretar, a
produção de Mario Filho se transformou na base da narrativa flamenga.
Contudo, Mario Filho tem um grande serviço prestado ao desporto
nacional. Não restam dúvidas que ele foi o maior cronista esportivo brasileiro
de todos os tempos e devo acrescentar que Mario Filho foi feliz na essência da
abordagem do racismo no futebol brasileiro. Mas, essa qualidade não anula que
parte de sua produção jornalistica e literária teve cunho parcial.
Assim sendo, até 1923 a relação entre Vasco e Flamengo se regia sem
grandes choques de rivalidade. Já havia dado o exemplo de 1914 no remo, outro
exemplo categórico é que quando ainda não havia seção de futebol no Vasco, os
associados do clube acabavam torcendo de modo efêmero para outros clubes no
futebol, inclusive o Flamengo. O ex-presidente do Vasco, José da Silva Rocha,
garante:
Entre os vascaínos era cada dia maior o desejo de
aderir à popular modalidade e intervir nas competições oficiais. Receio,
porventura infundado da reação dos homens do remo, entravava o que poderíamos
denominar de “revolução futebolística”. Aos domingos, após os jogos de
campeonato muitos sócios desciam dos bondes da chamada empresa Jardim Botânico
e reuniam-se na sede de Santa Luzia comentando as peripécias dos encontros que
tinham ido assistir. Alguns torciam pelo Fluminense, outros pelo Botafogo, pelo
América, pelo Flamengo… Os encontros eram aliciantes. Não se podia assisti-los
sem tomar partido por um dos grupos em luta19.
Portanto, a rivalidade com R maiúsculo entre Vasco e Flamengo nasceu no
futebol. Tendo o dia 8 de julho de 1923 como data de registro. É neste jogo que
de modo cristalino são plantadas as sementes que constituíram as raízes da
maior rivalidade do futebol brasileiro. Não é por menos que essa partida se
“cacifou” como um episódio antológico do futebol narrado em livros, teses,
artigos, notas, além de alimentar polêmicas no seio dos debates entre
estudiosos do tema.
No clássico de 8 de julho de 1923 é possível compreender a síntese do
futebol de toda uma época. Ali estava contido o elitismo aristocrático, o
racismo institucionalizado, o anti-lusitanismo e a defesa do amadorismo como o
enlace da pureza do jogo. Do outro lado estava um clube que era em si mesmo a
negação, em forma e conteúdo, do modelo predominante. E foi exatamente naquele
Vasco e Flamengo, nas Laranjeiras, que o choque entre os antagonismos se deu
literalmente.
Por isso, é determinante esmiuçar esse episodio. Segundo Mario Filho, a
contribuição do Vasco em 1923 foi tão original quanto o Sul-americano de 1919
para o futebol brasileiro. Para ele o sul-americano encerrava uma época no
futebol e o campeonato conquistado pelo Vasco em 23 começava outra.
A ascensão do Vasco para a primeira divisão da velha
Metropolitana, o que se deu em 23, teve para o football carioca uma importância
semelhante à conquista do campeonato sul-americano de 19 pelo scratch
brasileiro. Há de parecer exagero a comparação entre dois acontecimentos que,
aparentemente, nada têm de comum. Em 19, porém, se encerrava uma época do
football carioca, em 23 se abria outra. O que caracterizou 19 como 23 foi o
aumento súbito do público que assistia aos matches. De repente, os campos se
tornaram pequenos. Nem mesmo o estádio do Fluminense, construido para 19 e 22,
chegava para as multidões que não queriam deixar de sentir as emoções dos
campeonatos. O que provocou o primeiro transbordamento dos campos foi o
sul-americano de 19, em que o football brasileiro se empenhou tão
brilhantemente. O segundo foi a ascensão do Vasco para a primeira divisão da
velha Metro20.
A massificação dos acanhados estádios dos anos 1920 tornou as torcidas
mais heterogêneas. Com poucas exceções até 1919 ir a um jogo da 1ª divisão do
futebol carioca era um passatempo das “boas famílias”, um programa de depois da
missa nos dias de domingo. A torcida era seleta e elegante, as senhoras e as
moças usavam leques, belos chapéus floridos e vestidos longos. Os rapazes e senhores
de terno, gravata e chapéus com fitinhas nas cores do time. Muitos na
arquibancada eram sócios de um clube. Socialmente o que havia nos estádios,
havia nos glamorosos bailes do Fluminense e nas festas do Botafogo.
A homogeneidade social das arquibancadas era o retrato da belle époque
carioca. Dentro de alguns estádios, como o das Laranjeiras, havia a geral, um
espaço apartado de tamanho e qualidade inferior reservado para o setor mais
popular. Ali se reunia o torcedor sem terno e gravata, sem chapéus, sem títulos
de sociedade. De tal modo, os estádios de futebol, em alguma medida,
reproduziam a segregação social vigente na República Velha.
Em 1923 ocorre a quebra desse paradigma. Pela primeira vez na 1ª divisão
do futebol carioca uma multidão “policlassista” passa a acompanhar de modo
decidido um clube, o Vasco da Gama. Esse tipo de fenômeno até então só havia
ocorrido com o selecionado brasileiro no Sul-Americano de 1919.
E para o jogo vieram portugueses até do Pará. O Vasco
vencendo, vencendo (…). E eles chegavam de navio, de trem. Os hotéis cheios de
portugueses que nunca tinham visto futebol na vida deles. Foi essa gente toda
que encheu o estádio do Fluminense, que nem enchera completamente no
Sul-Americano e que se pensava que nunca iria encher. Em 23 o estádio do
Fluminense era um Maracanã, sem exagero. (…) Quem não era português torcia para
o Flamengo21.
A massificação do público nos estádios foi acompanhada pelo grau de
polarização das torcidas, algo novo na 1ª divisão naquele tempo. Tudo
isso somado provocou uma inevitavelmente e abrupta mudança de comportamento dos
torcedores dentro e fora das arquibancadas.
Outro aspecto que vale reforçar a reflexão é o seguinte: Mario Filho
afirma: “quem não era português torcia para o Flamengo”. Se considerarmos a
descrição de Mario Filho como verdadeira, então podemos considerar que esse
episódio forjou a primeira torcida “arco-íris” que se tem registro no futebol
brasileiro. Estou convencido que esse fenômeno ocorreu. Mas, de certo modo, dos
dois lados. Isso porque pelo lado do Flamengo, como veremos nas notas a seguir,
se agregou torcedores e associados de clubes que competiam na 1ª e na 2ª
divisão. Pelo lado do Vasco, para além de sua grande torcida, certamente muita
gente na arquibancada que foi apontada como português, provavelmente era tão
brasileira quanto a cachaça. Isso por quê? Porque essa era a tendência de
crescimento da torcida vascaína nos anos 1920. A cada jogo, a torcida Almirante
ganha mais adeptos. Portanto, se muita gente se somou na torcida anti-Vasco nas
Laranjeiras, por outro lado, muita gente também que não era (ainda) vascaína,
foi ao estádio para torcer pelo time que surpreendia a todos por sua
originalidade e pelo grande futebol dentro de campo. Não é à toa que naquela
multidão os pró-Vasco eram maiores que os anti-Vasco.
Isto é, a força do Vasco era tamanha que conquistava e até “roubava”
torcedores de outros clubes por sua característica singular, não por nada que
Orlando Cunha e Fernando Valle, no livro “Campos Salles, 118. 2º Edição”, irão
registrar que a partir de 1923, o América FC deixa de ter a “preferência maciça
(…) entre nossos irmãos lusitanos. Até essa data, o América – sem ser
propriamente o clube da colônia, como veio a ser em seguida, o grêmio
cruzmaltino – era aquele que contava com maior número de portugueses em sua
torcida”. Por outro lado, negros e mestiços que passaram a acompanhar o futebol
no Rio de Janeiro já haviam tido a experiencia de torcer pelos gols e o talento
de Gradin, jogador negro da Seleção Uruguaia que brilhou no Campeonato
Sul-Americano de 1919 no Brasil. Ou seja, em certa medida, o negro Gradin,
mesmo jogando pelo Uruguai, se transformou em uma referência positiva para os
que se viam como ele. Por isso, não é por coincidência que brotou no futebol
brasileiro jogadores denominados de “Gradin” por toda parte. Portanto, os
Camisas Negras vascaínos foram uma espécie potencializada em multidões desse
tipo fenômeno.
De tal maneira, é falsa a conotação que os cariocas e os brasileiros
torceram contra o Vasco naquele dia. Ou melhor, naquele campeonato. Essa é uma
narrativa inventada para contar a história ao gosto de determinado
direcionamento e, assim, distorcer os acontecimentos. Mais ainda, o Vasco já em
1923 não era um elemento exótico no meio desportivo. O clube era o maior
vencedor do remo. Esporte mais popular do Rio de Janeiro até o final dos anos
10. E seguiu tendo a atenção do público mesmo sendo ultrapassado pelo futebol
como esporte predileto da maioria. Ou seja, grande parte da população carioca
viu com bons olhos o triunfo do Vasco e não o contrário, conforme Mario Filho
deixa nas entrelinhas.
Contudo, o resultado adverso para os Camisas Negras fez com que o
carnaval fosse da torcida “arco-íris” pró-Flamengo. É nesse contexto que ocorre
a mítica briga de torcidas entre Vasco e Flamengo no dia 8 de julho de 1923.
Sobre o episódio Mario Filho em Histórias do Flamengo irá relatar que o
confronto entre os torcedores iniciou já nas arquibancadas. Segundo ele havia
muito mais vascaínos que flamenguistas naquele jogo. Por isso, a turma da
garagem e do Café Rio Branco estudou o estádio do Fluminense como um mapa de guerra.
“Todos os lugares estratégicos foram ocupados por
gente, do Flamengo, de pá de remo embrulhada em Jornal do Brasil. Vasco!,
gritava o português e levava a pá de remo na cabeça. Brigas pipocavam aqui e
acolá”22.
Entretanto, segundo o livro Flamengo e Vasco o Clássico dos milhões, tal
situação nas arquibancadas das Laranjeiras não ocorreu. Para os autores, após
um minucioso estudo sob os jornais da época, não seria possível sustentar a
versão da “tal surra que seus adeptos [do Flamengo] deram nos torcedores
adversários com pás de remo que entraram nas arquibancadas do Fluminense
disfarçados por folhas de papel”23.
Na verdade o problema ocorreu do lado de fora do estádio. Quando acabou
o jogo, começou o carnaval dos vencedores gozando a torcida do Vasco. Os
rubro-negros e torcedores de outros clubes organizaram um cortejo com
automóveis, o itinerário foi: Praia do Flamengo; Gloria; Lapa; Mem de Sá;
Evaristo da Veiga; Avenida Rio Branco; Praça Onze. Nos pontos tradicionais que
aglomeravam vascaínos como o Bar e Restaurante A Capela, na Lapa, e a
Cervejaria Vitória, na Praça Onze, houveram brigas e bombas.
De madrugada um grupo de torcedores anti-Vasco, não só rubro-negros,
penduraram um tamanco de dois metros e meio na porta da sede do Vasco em Santa
Luzia. O tamanco era uma espécie de estandarte com formato do calçado que
ficava em exposição na porta de uma tamancaria da Rua do Catete. Os torcedores
inflamados retiraram o estandarte da loja e penduraram na sede do Vasco. Uma
ação provocativa com todos os traços anti-lusitanos.
Para os acontecimentos descritos acima há registros confiáveis que
garantem a veracidade dos fatos. José da Silva Rocha afirma:
Contam crônicas que registraram-se cachações e correrias (…)
Na noite desse acontecimento cuja repercussão
transcendeu os limites da vida normal dos desportos para interessar toda a
cidade pois afinal interrompera-se a quase fenomenal trajetória do team do
Vasco em sua primeira temporada entre os grandes clubes, o bairro da Lapa
ganhou colorido novo e fervilhante. A massa de entusiastas adversários que
formaram grupos “gozadores” dos vascaínos que sempre de bom apetite após as
vitórias na tradicional “A CAPELA” festejavam entre suculentos sanduiches e
copos de delicioso alvaralhão procurou o local para desforra de tanto tempo de
“empafia” vascaina24.
Os jornais da época e, até mesmo, sócios rubro-negros, condenaram a
“incivilidade dos torcedores”. Veja a nota de um sócio do Flamengo no jornal O
Paiz, edição de 11 de julho de 1923.
Como sócio e “torcedor”, do glorioso C.R. Flamengo, muito me consternou
tal noticia, visto saber de antemão que a maior parte desses vagabundos eram
fervorosos adeptos do Vila Isabel F.C e Andarahy A.C., que contentes com o
feito da briosa equipe flamenga, não puderem passar sem offender o pavilhão do
C.R Vasco da Gama,e, em uma explosão de jacobinismo.
Portanto, toda a mitologia desses episódios, principalmente a piada do
“entra Basco que meu marido é sócio”, o “Brasil x Portugal” e “das pás de remo”
narradas por Mario Filho durante trinta anos a frente do Jornal dos Spots e em
sua grande produção literária, não apresenta outra fonte digna de nota que não
seja si próprio. Assim sendo, uma única versão, mesmo que absurda, passou valer
como uma espécie de “verdade” consentida sem aparente oposição através da
autoridade de Mario e da força superestrutural de suas publicações que foram
massificadas durante um largo período.
Todavia, para entender melhor esse panorama, nitidamente envolvendo
rivalidade de torcidas, busquei um especialista no tema para analisar
criticamente alguns episódios que colocam uma cunha vexatória na torcida do
Vasco em um ano de ouro para o clube. Por isso, diante do grau de importância
que Mario Filho dá aos casos, ouvi um pesquisador experiente no recorte
histórico das torcidas se demonstra decisivo. A partir desse contexto
entrevistei o historiador Jorge Luiz Medeiros Braga25.
Isto posto, vamos a narrativa de Mario Filho, direto no episodio das pás
de remo, uma vez que considero que a questão envolvendo a piada do “entra Basco
que meu marido é sócio” oriunda do remo e a analogia “Brasil x Portugal” nas
Laranjeiras já foram respondidas nesse artigo:
Manda a verdade que se acentue: muito mais vascaínos
do que rubro-negros. Só que o Rio Branco e a garagem do Flamengo tinham
estudado como num mapa de guerra o estádio do Fluminense, sobretudo as
arquibancadas, mais perto do gramado. Todos os lugares estratégicos foram
ocupados por gente, do Flamengo, de pá de remo embrulhada em Jornal do Brasil.
Vasco!, gritava o português e levava a pá de remo na cabeça. (…) bombas no
Capela, o Rio Branco noturno do Vasco (…) Cervejaria Vitória, onde os vascaínos
gostavam de comemorar triunfos26.
Jorge Medeiros comenta:
“Em primeiro lugar, se o estádio estava superlotado e naquela época não
havia uma divisão clara de torcidas por coloração das agremiações. A hipótese
de pipocar brigas eventuais e fragmentadas é mais do que comum. A verdade é que
tinha toda uma rivalidade que estava em jogo naquela disputa ali, aflorando os
sentimentos.
A torcida do Vasco tinha muita disposição para as brigas, porque aquilo
era muito comum na divisão [série B] que o Vasco vinha. Então os vascaínos
estavam habituados em participar de brigas. Até mesmo Leandro, no que Mario
Filho se refere de separar lugares estratégicos, a torcida do Vasco já fazia
isto direto. Nesse relato do Tavares do grupo vascaíno “Lasca o Pau” justamente
eles tinham essa conduta entre eles, tinham códigos, portanto, a torcida do
Vasco já fazia isto há muito tempo. De tal maneira, essa versão é um completo
absurdo, no contexto e na forma apresentada. Pelo seguinte, uma coisa é um
flamenguista ou mais de um flamenguista bater isoladamente num vascaíno. Outra
coisa foi o mito que se criou em torno das “pás de remo” entre as torcidas. E esse
é o ponto. Porque, em geral a torcida do Vasco jamais apanharia da torcida do
Flamengo naqueles anos. Se você pesquisar os recortes dos jornais nos anos
seguintes quando tinha jogo com o Flamengo, a preocupação maior era dos
rubro-negros se defenderem da torcida do Vasco. Ou seja, é o oposto. É evidente
que a torcida do Vasco naquele momento era muito mais pré-disposta ao
confronto, a autodefesa e a prática de dominar territórios. Tudo isto não era
habitual na torcida do Flamengo”.
Nos artigos preliminares para o livro “100 anos da Torcida Vascaína”,
escritos por Jorge Medeiros é possível compreender de modo didático a formação
da torcida do Vasco nos campos do subúrbio e o surgimento do grupo de
autodefesa “Lasca o Pau” em 1917.
Também começava a se formar um grupo aguerrido para defender os
torcedores vascaínos nos jogos em que a torcida adversária quisesse intimidar
os nossos adeptos. Era o grupo do “Lasca o Pau”, formado por remadores e
lutadores dispostos a defender nosso pavilhão no braço. Em crônica no Jornal
dos Sports nos anos 1950, o jornalista Álvaro Nascimento relembra os nomes de
alguns deles: Rafael Verri, Aquiles Astuto, Adão Brandão e Edgar Lody Batalha.
Em julho de 1963, por ocasião da morte de Victor Alves Moreira
(conhecido como Sinhá), o amigo e cronista Álvaro Nascimento exalta um dos
responsáveis pela formação da Turma da “Linha de Frente” entre os anos de
1916-1922, composta por aguerridos torcedores vascaínos dispostos a todo e
qualquer sacrifício em prol do clube. O jornalista escreve uma crônica em sua
homenagem, ressaltando a formação deste grupo de abnegados torcedores que
lutavam de corpo e alma para o sucesso do time de futebol e da segurança da
torcida nos estádios da cidade: “as novas gerações vascaínas desconhecem quão
grande foi o esforço, a dedicação de homens modestos para entregar-lhes esse
Vasco poderoso de nossos dias … um punhado de dedicados vascaínos que, com sol
ou chuva, nos campos suburbanos, constituía a ‘policia de choque’ a dar
garantia e segurança as nossas representações”.
O futebol nessa época já tinha seus adeptos, a torcida do Vasco ainda
com meia dúzia de gatos pingados, já começava acompanhar o time. Como fato
inédito, na época, quem chefiava essa Torcida Organizada era Dona Josefa
Pereira (primeira Chefe de Torcida do Vasco), irmã Manuel Pereira, proprietário
de uma casa de Tecidos. Como brigava a Dona Josefa Pereira.
Novamente em suas lembranças, o jornalista do Jornal dos Sports Álvaro
Nascimento, recorda 50 anos depois, o que era o desafio de torcer naqueles
campos da Segunda Divisão sem as mínimas condições de segurança e os nomes dos
pioneiros das arquibancadas: “naquele tempo não havia o Estádio Mario Filho
(Maracanã) com dois mil policiais que garantiam a ordem. As brigas eram no
Campo do Esperança, no Marco VI em Bangu, no Campo do Jardim Zoológico ou do
Palmeiras, na Quinta da Boa Vista. São considerados paladinos da Torcida
Vascaína, a maioria já falecidos, os seguintes Vascaínos, D. Josefa Pereira e
seu irmão Manuel Pereira, Joaquim Carneiro Dias, Baltar Junior, Dr Castro
Menezes, Carlos Medalhas, Albertino Moreira Dias, Ouriço, Francisco Costa,
Sinhá, Fava, Zapelli, Dom Quixote”.
Seguindo ainda o trabalho de pesquisa de Jorge Luiz Medeiros Braga,
disponibilizamos um depoimento do ex-dirigente do Vasco, Antonio Tavares
Rodrigues sobre o grupo “Lasca o Pau”:
Em depoimento a João Antero de Carvalho para o
livro Torcedores de Ontem e de Hoje (1968), o torcedor Antonio Tavares
Rodrigues, um português que chegou ao Brasil em 1915 e se tornaria presidente
do clube nos anos 1940, relembra como os torcedores se preparavam para as
partidas em campos adversários e a possibilidade de confrontos: “quando o Vasco
ainda não pertencia a primeira divisão formou o chamado “grupo do lasca o pau”,
verdadeiro “choque de força” que repelia as alcunhas de “galego” e “mondrongo”,
aquele tempo assacadas amiúde contra os torcedores”. Tavares além de competir
no water polo pelo Vasco também era atleta do remo e participava das lutas nas
ruas e arquibancadas. Ele relembra: “nós nos distribuíamos nas arquibancadas
aos grupos e quando nos chamavam pelos apodos, aquele que estivesse mais perto
ia “cobrindo” o ofensor até que outros choques chegassem ao local do desafio”.27
A formação da torcida do Flamengo foi oposta a do Vasco em todos os
sentidos, isto fica cristalino na passagem do livro Renato Souza Coutinho, “Um
Flamengo grande, um Brasil maior”:
O Flamengo sofria represálias em estádios que hoje são
ocupados sem grandes dificuldades pela torcida nos dias de jogos. Em 1932, no
bairro de Olaria, o Flamengo disputou uma partida como visitante e não
dispensou críticas aos assistentes locais. Flamengo perde em Olaria e volta
reclamando, estampava a manchete: As reclamações de Rubens, capitão do time,
deixam claro que ainda no início da década de 1930, até mesmo o bairro de
Olaria, próximo ao centro da cidade, representava um domínio distante da sua
casa28.
Diante de tudo que foi apresentado, fica nítido que as raízes dessa
rivalidade estão fincadas no gramado e, ao mesmo tempo, estão distante das
narrativas seletivas que buscaram distorcer a imagem – para o bem e/ou para o
mal – dos protagonistas do Clássico dos Milhões. Todavia, é preciso sublinhar
que a mística ao redor de Vasco e Flamengo teve seu ponto de partida nos duelos
antológicos de 1923 e, a partir dessa marca, qualquer outra competição
independentemente da modalidade envolvendo os dois clubes se tornou
substancialmente distinta. Quer dizer, a característica da rivalidade oriunda
do remo mudou significativamente. Tornou-se algo com DNA próprio, surgida de
elementos concretos a olho nu, que envolvia não só o fator desportivo, mas
agregava contradições de raça, classe e etnia do seio da sociedade brasileira
na oligárquica Primeira República. Não é à toa que o Flamengo foi um dos
agentes principais que subscreveram e sustentaram politicamente os pontos
elitistas e racistas da AMEA que foram negados categoricamente pelo CR Vasco da
Gama na Resposta Histórica assinada pelo presidente José Augusto Prestes. Por
todo esse poderoso histórico concentrado no biênio de 1923-1924, o jogo entre
Vasco e Flamengo é sempre carregado de expectativa, tensão, brio, paixão e
nervos a flor da pele. De tal maneira, a natureza da rivalidade entre Vasco e
Flamengo se traduz de modo original porque um é a antítese do outro, diferente,
portanto, das rivalidades fabricadas entre compadres em uma escrivaninha. Essa
rivalidade que surgiu entre antagonistas segue mais viva do que nunca,
independentemente do momento de cada time nas competições. Por tudo isto, o
Clássico dos Milhões, sem sombra de dúvidas, deve ser considerado do ponto de
vista histórico como o maior clássico do futebol brasileiro.
Notas
1 Antes das épicas partidas de 1923, ocorreu um jogo entres os times
de Vasco e Flamengo pelo Torneio Início de 1922. Os rubro-negros superaram os
Camisas Negras nessa ocasião por 1 tento a 0.
2 José da Silva Rocha foi presidente do Vasco da Gama em 1962.
Tornou-se o maior historiador do clube ao produzir a obra VASCO DA GAMA:
Histórico (1898 – 1923), publicado em 1975. Rochinha pretendia lançar o volume
2 e 3 como continuação do primeiro livro. No entanto, veio a falecer (1981)
antes de conseguir concretizar esse projeto. Alguns de seus escritos foram
publicados no jornal A Noite na coluna “Um Cinqüentenário Desportivo” (1948).
José da Silva Rocha teve sua vida devotada ao Vasco, em 1912 já participava da
vida social do clube. Em 1915 se torna sócio geral, passou por todas as etapas
do quadro associativo, sócio remido, benemérito e grande benemérito. Foi
timoneiro, praticou pólo-aquático, tênis, futebol (terceiro time de 1922). Um
homem ativo da vanguarda vascaína em muitos episódios decisivos da vida
desportiva e social do Vasco da Gama.
3 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama –
Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 335.
4 Mário Polo presidiu o Fluminense de 29 de abril de 1940 a 05 de
maio de 1941.
5 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico:
1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 335.
6 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo
x Vasco – O Clássico de Milhões.
Relume Dumará. 1999. p. 30.
7 FILHO, Mario. Histórias
do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32.
8 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo x Vasco – O
Clássico de Milhões. Relume Dumará. 1999. p. 31.
9 Carlito Rocha foi praticamente tudo no Botafogo: jogador no inicio
do século 20, técnico nos anos 30 e presidente de 1948 a 1951, o folclórico
alvinegro é sem dúvida um dos maiores personagens da história do Botafogo.
10 Os gols do Flamengo foram de Candiota, Nonô e Arlindo.
11 APUD BLANC, Aldir e MARQUES, José. Vasco A
Cruz do Bacalhau. Ediouro. 2009.p.74.
12 FILHO, Mário. Histórias
do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32
13 memoriavascaina.com (09/11/2019).
14 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama –
Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 305.
15 FILHO, Mario. O Negro
no Futebol Brasileiro. Mauad X. 2010. p.
141.
16 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama –
Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.192
17 FILHO, Mário. Histórias
do Flamengo. Mauad X. 2014. p. 41.
18 O Globo, Esportes. 5 de maio de 1996. p. 66.
19 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama –
Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.195.
20 Idem. p. 330.
21 O Globo, Esportes. 5 de maio de 1996. p. 66.
22 FILHO, Mario. Histórias
do Flamengo. Mauad X. 2014.p. 32.
23 ASSAF, Roberto e MARTINS, Clóvis. Flamengo x Vasco – O
Clássico de Milhões. 1999. p. 32.
24 ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama
Histórico 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p.330.
25 Professor de História, fez parte da equipe editorial do Jornal da
Força Jovem Vasco de 1992-1995 e defendeu o Mestrado com o tema da “Origem das
Torcidas Organizadas no RJ nos anos de 1940”.
26 COUTINHO, Renato Soares. Um
Flamengo Grande, Um Brasil Maior.
2014. 7 Letras. p. 32/33.
27 BRAGA, Jorge Luiz Medeiros. 100 anos da Torcida Vascaína. 2017.
28 COUTINHO, Renato Soares. Um
Flamengo Grande, Um Brasil Maior.
2014. 7 Letras. p. 37.
Leandro Fontes
Geógrafo, pesquisador e autor do livro Vasco: o clube do povo – uma
polêmica com o flamenguismo (1923-1958).
Como citar
FONTES, Leandro Tavares. 100 anos do Clássico dos Milhões: A verdadeira
origem da rivalidade entre Vasco e Flamengo. Ludopédio, São Paulo, v. 168,
n. 19, 2023.
Vasco x Flamengo Revista da Semana 1923 |