“por
amor ao clube, fazemos qualquer sacrifício”.
Frase de Dulce Rosalina
1956 Rainhas do Rádio e da Arquibancada
Em
meados dos anos 1950 começava a reinar nos estádios Dulce Rosalina. Primeira e
única torcida organizada do Vasco até o início dos anos 1970, a Torcida
Organizada do Vasco (TOV) teve como grande líder e presidente desde a sua
fundação em 1943, João de Luca, que ficou na direção da mesma até 1956, quando
se afastou por motivo de saúde. A partir
deste ano uma jovem passou a comandar a torcida com o mesmo talento e
disposição: a carioca Dulce Rosalina Ponce de Leon, se tornou a maior
representante da torcida cruzmaltina nos próximos 30 anos, conduzindo sua
torcida em todos os estádios do Rio de Janeiro e por outros estados,
especialmente São Paulo, nas partidas do Vasco no torneio Rio-São Paulo e
depois pelo campeonato brasileiro.
Única mulher ocupando um lugar de
destaque entre os torcedores nos anos 1950, Dulce acompanhava as atividades do clube desde muito cedo
influenciada por seu pai, um português que se tornou vascaíno em virtude da
história do clube de combate ao preconceito racial.
Dulce passou a integrar
esporadicamente a TOV junto de outros jovens ainda nos anos 1940, lá fazia
amizade com jogadores, dirigentes e associados do clube. Desse contato
cotidiano com a vida de sua agremiação surgiram suas principais amizades e
contatos. Foi a através do futebol que Dulce conheceu o jogador Ponce de Leon,
que atuou no próprio Vasco e no São Paulo, casando com o atleta em 1949 e
vivendo junto com ele até 1965, quando ficou viúva.
Mesmo casada Dulce era uma
referência na torcida do Vasco em função de sua afeição ao clube da qual
devotava um amor sem igual, fazendo-o uma extensão de sua família, acompanhando
aos jogos e todos os dias no clube conversando com os atletas e ouvindo os
dirigentes.
Dulce
representou por anos o ideal do torcedor-simbolo de um clube, sendo por isto
elogiada e exaltada pela imprensa que fez de suas atitudes um exemplo a ser
seguido por outros torcedores. A torcedora nunca era apresentada como fanática
que perde a razão para acompanhar o seu time do coração, nem de forma caricata
do torcedor alienado. Sempre foi exaltada a figura de uma pessoa que renuncia
de outros caminhos da vida para incentivar o seu clube. Sua liderança a fez
respeitada em todo o Brasil e querida em todos os lugares que passou. Uma
liderança nos dias atuais que não trabalhasse para acompanhar o clube, seria,
no mínimo, acusada de se beneficiar do clube de alguma maneira. No entanto, a
imagem de Dulce construída nos anos 1950 e 1960 foi de exemplo de torcedora
fiel: “pensei em trabalhar, desempenhar atividade no comercio ou na industria,
todavia, concluí que seria desperdiçar energia. Poderia ficar impossibilitada,
por exemplo, de participar intensamente da vida do meu Vasco, como vinha
fazendo, e não sei se suportaria privar-me da maior alegria de minha vida, que
é estar sempre a sua disposição”(CARVALHO, 1968, p.227).
Os
chefes de torcidas e/ou torcedores-símbolos não surgiram com os grandes
estádios, antes, já era possível identificá-los acompanhando os jogos de seus
clubes, religiosamente, mesmo nos mais acanhados estádios. Fontainha, no
América, Chico Guanabara, no Fluminense, Perneta no São Cristóvão, Polar no
Vasco, eram algumas, dentre as várias figuras humanas, que se destacavam no
meio de inúmeros assistentes. Entretanto, com a projeção do futebol como
espetáculo de multidões e a transformação da imprensa esportiva em grandes
empresas de comunicação, proporcionou o status destes torcedores em grandes
símbolos de suas respectivas torcidas. Cada um do seu jeito, com suas
idiossincrasias, se “afastando” da massa “anônima” que inundavam as praças
esportivas, mas ao mesmo tempo expressando as atitudes típicas daquilo que se
caracterizaria como o comportamento do torcedor de futebol.
Apaixonado pelo clube, incentivador
permanente de seu time, amigo dos jogadores e companheiro fiel dos outros
torcedores em todos os estádios da cidade.
Acompanhando o dia-a-dia do clube e do time, capaz de todo sacrifício e
dedicação em prol do sucesso de sua agremiação. Este foi o perfil, o
“tipo-ideal”, apresentado pela ótica da imprensa esportiva para estes
personagens, que suplantavam, em importância, as torcidas organizadas
(uniformizadas) que representavam.
Dulce assume o comando da torcida em
um momento delicado pois o maior rival ganhava o tricampeonato no começo de
1956 e a TOV passava por uma crise interna em função do afastamento progressivo
de seu maior líder, João de Lucca, e o surgimento de um novo grupo que
“assumia” a torcida. Como Dulce ganhou a confiança dos dois grupos e conseguir
unir a torcida é algo que não se tem registro nas fontes consultadas. A
história oficial parte de apoio do novo técnico do Vasco em meados de 1956,
Martim Francisco, que pede a Dulce para comandar a torcida e a promessa do
treinador dar o título carioca de volta aos vascaínos em 1956. E foi o que
aconteceu.
Em campo o time do Vasco
entusiasmava seus torcedores e a cada dia Dulce ganhava mais destaque na
imprensa com depoimentos e entrevistas com uma jovem liderança. Dulce tinha
apenas 22 anos quando ficou à frente do grupo e demonstrava maturidade no
contato com os jornalistas procurando amenizar problemas que surgiam nas
arquibancadas contra os rivais. O melhor exemplo surge após o jogo entre Vasco
e Botafogo que termina com uma vitória dos vascaínos mas que provocou muitas
brigas em campo, entre os dirigentes como rompimento de relações do Botafogo e,
finalmente, nas arquibancadas. Dulce explica como foi a briga: “Domingo passado, por
exemplo, cheguei ao Maracanã 15 para uma hora. No setor que nos era destinado,
encontrei uma bandeira do Botafogo, tendo eu perguntado quem era o responsável
por ela. Como ninguém disse nada, enrolei a bandeira alvinegra, cuidadosamente,
para entregar ao seu dono quando apareceram dois torcedores e que tentaram me
agredir, tendo sido salva pela atitude de um torcedor do Benfica, dos muitos
que militam em nossas fileiras, que recebeu o soco que me era destinado. Ainda
assim, fiquei ligeiramente ferida no braço. Mas, não tem importância, porque
tudo é em favor do Vasco, que considero como filho. Meu filho mais velho, pois
tenho dois filhinhos. E, se Deus quiser, haveremos de passar este ano um Natal
mais feliz, com o Vasco Campeão. E de acordo com uma promessa do Presidente
Arthur Pires, o Estádio de São Januário se iluminará todo, para receber a
Torcida Uniformizada, na noite da comemoração pela conquista do Campeonato de
1956” [1].
O Vasco
conquista o título carioca por antecipação vencendo o Bangu, no Maracanã, na
penúltima rodada. O músico Aldir Blanc, com apenas 10 anos, lembra desse dia na
arquibancada, ao lado de seu pai, após o gol de Vavá: “foi um delírio (...)
voltemos ao sábado memorável. Depois daquela tarde nunca mais consegui entrar
no Maracanã sem a reverência de quem comparece a um santuário” (2009, p.228).
A conquista do título une torcedores e
dirigentes que fazem uma grande festa no centro da cidade perto de uma rua
tradicional dos comerciantes protugueses, com direito a bateria de escola de
samba numa festa que faz da mistura social a caracteristica principal de nossa
torcida: “com as cabrochas da Escola de Samba do Salgueiro, chopp e tremoço, e
milhares de Casacas, pronunciados a todo momento com entusiasmo, os
comerciantes de secos e molhados da Rua do Acre, festejaram a vitória do Vasco
no campeonato de 1956. E 100 mil cruzeiros (arrecadados antecipadamente), foram
consumidos em chopp e empadinhas pelas pessoas (vascaínas ou não) que estiveram
na festa da Rua do Acre. Compareceram os cartolas, Ciro Aranha, Diogo Rangel,
José do Amaral Osório e o grande animador da festa João de Lucca. Especialmente
convidado, o embaixador Negrão de Lima compareceu, apesar de ser flamengo. De
13 as 18 horas durou a comemoração, que terminou com aspecto de carnaval”[2].
O
presidente do clube, Ciro Aranha. o mesmo da época do “Expresso da Vitória” nos
anos 1940, revive em 1956 o clima dos melhores anos do clube e acompanha os
festejos junto aos torcedores. A propria imprensa que passou a exaltar o rival
nos anos anteriores reconhece o valor da galera cruzmaltina: “A Torcida
Organizada do Vasco foi o seu jogador número 12. Em todas as ocasiões deste
certame, quer na vitória, quer na derrota, não faltou nunca com o incentivo a sua
equipe. Ontem até o presidente do Vasco Ciro Aranha dela fez parte”[3].
Enquanto
Dulce se consagrava nas arquibancadas, uma outra torcedora vascaína começava a
brilhar. A cantora Dóris Monteiro era eleita Rainha do Radio em 1956. Um título
que ostentaria em 1957 e 1958. Desbancando a cantora e torcedora do Flamengo,
Angela Maria, eleita rainha do Radio nos anos anteriores.
Nas crônicas de Mario Filho reunidas no livro O Sapo
de Arubinha (1994), uma delas foi escrita em agosto de 1956, intitulada a
" Grandeza do Vasco". O escritor faz uma homenagem ao clube que completa
58 anos naquela semana e procura dar uma explicação para o crescimento da
agremiação e da formação de sua identidade. Vamos resumir em três frases lançando
luz sobre as diretrizes que orientavam o seu pensamento: "o que marcou o
Vasco foi o futebol e não o remo", "pode-se começar a contar a
grandeza do Vasco do dia em que ele perdeu para o Flamengo" e "como
seria o Vasco se não tivessem mexido com o português". A primeira frase
peca por caracterizar a grandeza do Vasco pelo futebol como se isso não tivesse
acontecido com outros clubes e tira o peso do remo para o grêmio, pois este era
o maior vencedor nos anos 1910 e 1920. Quando o Vasco estreou na primeira
divisão a sua grandeza já
provinha de uma herança do remo, não podendo separar um esporte
do outro na trajetória do Vasco que assumia uma aspiração diferenciada no
cenário da época.. A segunda é um falso elogio pois narra a história do clube a
partir de um jogo que foi mais importante para o adversário. O que marcou a
história do clube em 1923 foi a conquista do título e não a perda da
invencibilidade. A torcida do Vasco continuou comparecendo em massa em 1924 e
não enfrentava os "grandes". A última frase se contadiz ao longo do próprio
texto quando ele afirma de forma ambígua a brasilidade da instituição: "o
Vasco era tão brasileiro como o mais brasileiro dos clubes" e "não
foi só o português que meteu a mão no bolso. O brasileiro também". Nessas
duas frases fica claro que o Vasco desde o começo foi mais que "um clube
de imigrantes", ao contrário de outras associações esportivas que procuraram
criar barreiras para os brasileiros.
Mario
Filho e muitos outros narradores da História do Futebol Carioca procuraram
enfatizar apenas um lado do Vasco, dando ao Flamengo uma identidade mais
popular e nacional. O historiador Bernardo Hollanda (2004, p.201) refuta este
modelo de interpretação do clube que tem sua história baseada em inúmeros
outros eventos marcantes: “o esquema de classificação do jornalista Mario Filho
fixava-se apenas na fundação do clube e não contemplava esta série de fatos
capitais na sua trajetória”.
A
escritora Rachel de Queiroz também rebate a tese do clube de imigrantes e
prefere enfatizar a maior característica da agremiação que foi o caráter
miscigenado com a preocupação de integrar pessoas de diferentes origens: “pois
tudo isso somos nós brasileiros, e nessa mistura temos uma imagem viva do
Vasco, que é por sua vez uma imagem viva do Brasil”[4].
Ou seja, compreende o clube pela relação que ele estabelece com a sociedade e
acompanha a formação do sentimento coletivo de sua torcida com os anseios de
integração da população brasileira em uma nação de todos.
Fonte:
Livro “100 anos da Torcida Vascaína”,
escrito pelo historiador Jorge Medeiros.
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