domingo, 11 de dezembro de 2016

VASCO 2016: LIVRO "100 ANOS DA TORCIDA VASCAÍNA", 1956 RAINHAS DO RÁDIO E DA ARQUIBANCADA

                                      “por amor ao clube, fazemos qualquer sacrifício”.
                                                            Frase de Dulce Rosalina


1956               Rainhas do Rádio e da Arquibancada


Em meados dos anos 1950 começava a reinar nos estádios Dulce Rosalina. Primeira e única torcida organizada do Vasco até o início dos anos 1970, a Torcida Organizada do Vasco (TOV) teve como grande líder e presidente desde a sua fundação em 1943, João de Luca, que ficou na direção da mesma até 1956, quando se afastou por motivo de saúde.  A partir deste ano uma jovem passou a comandar a torcida com o mesmo talento e disposição: a carioca Dulce Rosalina Ponce de Leon, se tornou a maior representante da torcida cruzmaltina nos próximos 30 anos, conduzindo sua torcida em todos os estádios do Rio de Janeiro e por outros estados, especialmente São Paulo, nas partidas do Vasco no torneio Rio-São Paulo e depois pelo campeonato brasileiro.
            Única mulher ocupando um lugar de destaque entre os torcedores nos anos 1950, Dulce acompanhava  as atividades do clube desde muito cedo influenciada por seu pai, um português que se tornou vascaíno em virtude da história do clube de combate ao preconceito racial.
            Dulce passou a integrar esporadicamente a TOV junto de outros jovens ainda nos anos 1940, lá fazia amizade com jogadores, dirigentes e associados do clube. Desse contato cotidiano com a vida de sua agremiação surgiram suas principais amizades e contatos. Foi a através do futebol que Dulce conheceu o jogador Ponce de Leon, que atuou no próprio Vasco e no São Paulo, casando com o atleta em 1949 e vivendo junto com ele até 1965, quando ficou viúva.
            Mesmo casada Dulce era uma referência na torcida do Vasco em função de sua afeição ao clube da qual devotava um amor sem igual, fazendo-o uma extensão de sua família, acompanhando aos jogos e todos os dias no clube conversando com os atletas e ouvindo os dirigentes.
Dulce representou por anos o ideal do torcedor-simbolo de um clube, sendo por isto elogiada e exaltada pela imprensa que fez de suas atitudes um exemplo a ser seguido por outros torcedores. A torcedora nunca era apresentada como fanática que perde a razão para acompanhar o seu time do coração, nem de forma caricata do torcedor alienado. Sempre foi exaltada a figura de uma pessoa que renuncia de outros caminhos da vida para incentivar o seu clube. Sua liderança a fez respeitada em todo o Brasil e querida em todos os lugares que passou. Uma liderança nos dias atuais que não trabalhasse para acompanhar o clube, seria, no mínimo, acusada de se beneficiar do clube de alguma maneira. No entanto, a imagem de Dulce construída nos anos 1950 e 1960 foi de exemplo de torcedora fiel: “pensei em trabalhar, desempenhar atividade no comercio ou na industria, todavia, concluí que seria desperdiçar energia. Poderia ficar impossibilitada, por exemplo, de participar intensamente da vida do meu Vasco, como vinha fazendo, e não sei se suportaria privar-me da maior alegria de minha vida, que é estar sempre a sua disposição”(CARVALHO, 1968, p.227).
Os chefes de torcidas e/ou torcedores-símbolos não surgiram com os grandes estádios, antes, já era possível identificá-los acompanhando os jogos de seus clubes, religiosamente, mesmo nos mais acanhados estádios. Fontainha, no América, Chico Guanabara, no Fluminense, Perneta no São Cristóvão, Polar no Vasco, eram algumas, dentre as várias figuras humanas, que se destacavam no meio de inúmeros assistentes. Entretanto, com a projeção do futebol como espetáculo de multidões e a transformação da imprensa esportiva em grandes empresas de comunicação, proporcionou o status destes torcedores em grandes símbolos de suas respectivas torcidas. Cada um do seu jeito, com suas idiossincrasias, se “afastando” da massa “anônima” que inundavam as praças esportivas, mas ao mesmo tempo expressando as atitudes típicas daquilo que se caracterizaria como o comportamento do torcedor de futebol.
            Apaixonado pelo clube, incentivador permanente de seu time, amigo dos jogadores e companheiro fiel dos outros torcedores em todos os estádios da cidade.  Acompanhando o dia-a-dia do clube e do time, capaz de todo sacrifício e dedicação em prol do sucesso de sua agremiação. Este foi o perfil, o “tipo-ideal”, apresentado pela ótica da imprensa esportiva para estes personagens, que suplantavam, em importância, as torcidas organizadas (uniformizadas) que representavam.
            Dulce assume o comando da torcida em um momento delicado pois o maior rival ganhava o tricampeonato no começo de 1956 e a TOV passava por uma crise interna em função do afastamento progressivo de seu maior líder, João de Lucca, e o surgimento de um novo grupo que “assumia” a torcida. Como Dulce ganhou a confiança dos dois grupos e conseguir unir a torcida é algo que não se tem registro nas fontes consultadas. A história oficial parte de apoio do novo técnico do Vasco em meados de 1956, Martim Francisco, que pede a Dulce para comandar a torcida e a promessa do treinador dar o título carioca de volta aos vascaínos em 1956. E foi o que aconteceu.
            Em campo o time do Vasco entusiasmava seus torcedores e a cada dia Dulce ganhava mais destaque na imprensa com depoimentos e entrevistas com uma jovem liderança. Dulce tinha apenas 22 anos quando ficou à frente do grupo e demonstrava maturidade no contato com os jornalistas procurando amenizar problemas que surgiam nas arquibancadas contra os rivais. O melhor exemplo surge após o jogo entre Vasco e Botafogo que termina com uma vitória dos vascaínos mas que provocou muitas brigas em campo, entre os dirigentes como rompimento de relações do Botafogo e, finalmente, nas arquibancadas. Dulce explica como foi a briga: “Domingo passado, por exemplo, cheguei ao Maracanã 15 para uma hora. No setor que nos era destinado, encontrei uma bandeira do Botafogo, tendo eu perguntado quem era o responsável por ela. Como ninguém disse nada, enrolei a bandeira alvinegra, cuidadosamente, para entregar ao seu dono quando apareceram dois torcedores e que tentaram me agredir, tendo sido salva pela atitude de um torcedor do Benfica, dos muitos que militam em nossas fileiras, que recebeu o soco que me era destinado. Ainda assim, fiquei ligeiramente ferida no braço. Mas, não tem importância, porque tudo é em favor do Vasco, que considero como filho. Meu filho mais velho, pois tenho dois filhinhos. E, se Deus quiser, haveremos de passar este ano um Natal mais feliz, com o Vasco Campeão. E de acordo com uma promessa do Presidente Arthur Pires, o Estádio de São Januário se iluminará todo, para receber a Torcida Uniformizada, na noite da comemoração pela conquista do Campeonato de 1956” [1].
            O Vasco conquista o título carioca por antecipação vencendo o Bangu, no Maracanã, na penúltima rodada. O músico Aldir Blanc, com apenas 10 anos, lembra desse dia na arquibancada, ao lado de seu pai, após o gol de Vavá: “foi um delírio (...) voltemos ao sábado memorável. Depois daquela tarde nunca mais consegui entrar no Maracanã sem a reverência de quem comparece a um santuário” (2009, p.228).
             A conquista do título une torcedores e dirigentes que fazem uma grande festa no centro da cidade perto de uma rua tradicional dos comerciantes protugueses, com direito a bateria de escola de samba numa festa que faz da mistura social a caracteristica principal de nossa torcida: “com as cabrochas da Escola de Samba do Salgueiro, chopp e tremoço, e milhares de Casacas, pronunciados a todo momento com entusiasmo, os comerciantes de secos e molhados da Rua do Acre, festejaram a vitória do Vasco no campeonato de 1956. E 100 mil cruzeiros (arrecadados antecipadamente), foram consumidos em chopp e empadinhas pelas pessoas (vascaínas ou não) que estiveram na festa da Rua do Acre. Compareceram os cartolas, Ciro Aranha, Diogo Rangel, José do Amaral Osório e o grande animador da festa João de Lucca. Especialmente convidado, o embaixador Negrão de Lima compareceu, apesar de ser flamengo. De 13 as 18 horas durou a comemoração, que terminou com aspecto de carnaval”[2].
            O presidente do clube, Ciro Aranha. o mesmo da época do “Expresso da Vitória” nos anos 1940, revive em 1956 o clima dos melhores anos do clube e acompanha os festejos junto aos torcedores. A propria imprensa que passou a exaltar o rival nos anos anteriores reconhece o valor da galera cruzmaltina: “A Torcida Organizada do Vasco foi o seu jogador número 12. Em todas as ocasiões deste certame, quer na vitória, quer na derrota, não faltou nunca com o incentivo a sua equipe. Ontem até o presidente do Vasco Ciro Aranha dela fez parte”[3].
            Enquanto Dulce se consagrava nas arquibancadas, uma outra torcedora vascaína começava a brilhar. A cantora Dóris Monteiro era eleita Rainha do Radio em 1956. Um título que ostentaria em 1957 e 1958. Desbancando a cantora e torcedora do Flamengo, Angela Maria, eleita rainha do Radio nos anos anteriores.
Nas crônicas de Mario Filho reunidas no livro O Sapo de Arubinha (1994), uma delas foi escrita em agosto de 1956, intitulada a " Grandeza do Vasco". O escritor faz uma homenagem ao clube que completa 58 anos naquela semana e procura dar uma explicação para o crescimento da agremiação e da formação de sua identidade. Vamos resumir em três frases lançando luz sobre as diretrizes que orientavam o seu pensamento: "o que marcou o Vasco foi o futebol e não o remo", "pode-se começar a contar a grandeza do Vasco do dia em que ele perdeu para o Flamengo" e "como seria o Vasco se não tivessem mexido com o português". A primeira frase peca por caracterizar a grandeza do Vasco pelo futebol como se isso não tivesse acontecido com outros clubes e tira o peso do remo para o grêmio, pois este era o maior vencedor nos anos 1910 e 1920. Quando o Vasco estreou na primeira divisão a sua grandeza já provinha de uma herança do remo, não podendo separar um esporte do outro na trajetória do Vasco que assumia uma aspiração diferenciada no cenário da época.. A segunda é um falso elogio pois narra a história do clube a partir de um jogo que foi mais importante para o adversário. O que marcou a história do clube em 1923 foi a conquista do título e não a perda da invencibilidade. A torcida do Vasco continuou comparecendo em massa em 1924 e não enfrentava os "grandes". A última frase se contadiz ao longo do próprio texto quando ele afirma de forma ambígua a brasilidade da instituição: "o Vasco era tão brasileiro como o mais brasileiro dos clubes" e "não foi só o português que meteu a mão no bolso. O brasileiro também". Nessas duas frases fica claro que o Vasco desde o começo foi mais que "um clube de imigrantes", ao contrário de outras associações esportivas que procuraram criar barreiras para os brasileiros.
Mario Filho e muitos outros narradores da História do Futebol Carioca procuraram enfatizar apenas um lado do Vasco, dando ao Flamengo uma identidade mais popular e nacional. O historiador Bernardo Hollanda (2004, p.201) refuta este modelo de interpretação do clube que tem sua história baseada em inúmeros outros eventos marcantes: “o esquema de classificação do jornalista Mario Filho fixava-se apenas na fundação do clube e não contemplava esta série de fatos capitais na sua trajetória”.
A escritora Rachel de Queiroz também rebate a tese do clube de imigrantes e prefere enfatizar a maior característica da agremiação que foi o caráter miscigenado com a preocupação de integrar pessoas de diferentes origens: “pois tudo isso somos nós brasileiros, e nessa mistura temos uma imagem viva do Vasco, que é por sua vez uma imagem viva do Brasil”[4]. Ou seja, compreende o clube pela relação que ele estabelece com a sociedade e acompanha a formação do sentimento coletivo de sua torcida com os anseios de integração da população brasileira em uma nação de todos.
Fonte: Livro “100 anos da Torcida Vascaína”, escrito pelo historiador Jorge Medeiros.


[1] Fonte: Jornal Diário da Noite 19 de Novembro de 1956.
[2] Fonte: Revista da Semana 1956.
[3] Fonte: Jornal A Noite 24 de Dezembro de 1956
[4]  Fonte: Jornal dos Sports, 31 agosto de 1968.

Jornal Diário da Noite 1956

Jornal A Noite 1956


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