“Na Lapa em frente a tradicional Capela os comentários e manifestações tiveram aparência de comício”
José da Silva Rocha –
historiador do Vasco
1923 O Time do Povo
Durante
seis anos o Vasco disputou campeonatos de futebol fora da primeira divisão. Bastou
o clube ingressar na divisão principal (1923) com um time forte e entrosado, para
que sua a torcida (já grande e respeitada) fosse alavancada como a maior da cidade. “O Vasco
expandia-se a ponto imprevisível. O início do exercício de 1923 coincidiu o
registro de verdadeira avalanche de proposta para sócios” (Rocha, 1975, p.333).
A partir daí a torcida vascaína passou a ser adotada por inúmeros cariocas sem
clube ou que mudavam de time. Dessa massa de torcedores que assumia uma nova
identidade, era evidente que uma parcela expressiva tinha origem na comunidade
portuguesa[1]
que projetou no time guerreiro o seu representante no esporte: “Quanto mais o
Vasco vencia, mas os campos se enchiam. Até o estádio do Fluminense ficou
pequeno. Gente que nunca tinha assistido a uma partida de futebol deu para
comprar a sua arquibancada. Tudo português, o português se julgando obrigado a
ir onde o Vasco ia” (Mario Filho, 1994, p.121).
Durante muito tempo era esta a
imagem que alguns queriam passar da torcida do Vasco. O próprio Mario Filho que
não era uma pessoa que defendia preconceitos e procurava ser imparcial, nesta parte
do livro também reproduz o preconceito dos sócios dos grandes clubes ao
caracterizar e reduzir a torcida do Vasco como a “torcida dos portugueses”. Era
a maneira como os clubes da zona sul, formados por brancos, elitistas e
racistas, encontravam para descaracterizar o seu rival. Seria mais fácil
identificar um confronto entre Brasil e Portugal, metrópole e colônia, que
assumir preconceitos raciais e sociais dos clubes grandes, vencedores de todas
as competições até 1922. Para o geógrafo Fernando Ferreira, a discriminação
sofrida pelos jogadores e torcedores do Vasco tinha várias origens: “campanha
empreendida contra o Vasco da Gama possuía um caráter muito mais amplo do que
se costuma divulgar, sendo possuidora de um cunho racista, elitista e xenófobo,
representado pela perseguição à “maldita” tríade preto – pobre – português”
(FERREIRA, 2004, p.45).
A
paixão pelo futebol ocorre através de um processo social complexo e
multifacetado, conseguindo ultrapassar barreiras sociais, econômicas,
geográficas e culturais. Através dos torcedores, entre outros atores sociais, é
claro, o futebol brasileiro estava mudando o sentido inicial (elitista e
excludente) para um domínio mais popular e democrático. Não que esse processo
tivesse um caminho sem embates e disputas. A apropriação das camadas populares
pelo futebol nem sempre foi aceita de forma tranquila e transparente.
O
advento na primeira divisão em 1923 do Vasco da Gama como um novo forte rival
no futebol carioca, fez com que junto das três maiores torcidas (Flamengo,
Fluminense e Botafogo), fosse incluída a torcida vascaína que ganharia
torcedores em todas as classes sociais e de diferentes origens.
È
claro que a presença maciça de portugueses que se tornaram vascaínos foi algo
incontestável. Mas não é só isso, com ressaltamos anteriormente. Até a passagem
do Vasco para a primeira divisão, a torcida americana era a que tinha mais
torcedores portugueses. É o que constatam os historiadores do clube: “perdemos,
então, a preferência maciça que gozávamos entre nossos irmãos lusitanos. Até
essa data, o América – sem ser propriamente o clube da colônia, como veio a
ser, em seguida, o grêmio cruzmaltino – era aquele que contava com maior número
de portugueses em sua torcida” (CUNHA e VALLE, p.140).
Entretanto,
o Vasco desbancaria o América na própria Zona Norte, onde ambos estavam
localizados, mas atraindo torcedores de outras origens. Clube formado por
brancos, o América, se parecia com os clubes grandes da zona sul, porém sua
localização na outra zona reunindo torcedores de bairros próximos da Tijuca,
tinha como preocupação principal querer se diferenciar dos clubes mais pobres.
Daí reunir as famílias de classe média do bairro, marcando seu perfil.
Seguimos a linha de raciocínio de
José da Silva Rocha (1975) que aponta para a diferença de classe com a maior
responsável pela rivalidade entre os clubes: “ a massa de novos espectadores
embora ‘a rigor’ demonstrava sua origem trabalhista. A verdade é que houve
certos choques com essa invasão. Quase
‘desagradável’ para poucos não apaixonados dos clubes tradicionais”
(p.333)
Embora
a rivalidade entre Vasco e Flamengo tenha suas origens no remo desde o final do
século XIX, o certo é que somente quando o Vasco entrou para a elite do futebol
carioca em 1923, que o confronto ganharia contornos épicos jamais vistos nas
regatas, ainda que o remo mobilizasse fortes paixões.
Formando
grupos de torcedores das camadas populares em prol do time e do clube, a
torcida vascaína ia se distinguindo das torcidas rivais e implantando um novo
modo de torcer, mais apaixonado e entusiasmado, capaz de criar grandes
bandeiras e outros instrumentos de adesão ao clube. Não é a toa que o jornal
Correio da Manhã registrava em 22 de abril de 1923 a força de nossa claque: “a
torcida vascaína, que é por sinal a mais incomodativa de quantas temos visto,
explode no diapasão de um ‘Vaaaaasco’ formidável” (MALAIA, 2012, p.77). Esta
foi a reação da torcida vascaína diante da vitória sobre o Botafogo em pleno
estádio de General Severiano. O próximo jogo era contra o Flamengo no campo do
adversário. Outra vez estádio lotado: “os portões tiveram de encerrar-se muito
antes do início do jogo principal” com a vitória do Vasco por 3 a 1, “legiões
de partidários do clube vencedor encheram de cânticos e vivas todo o bairro de
Laranjeiras. E na Lapa em frente a tradicional Capela os comentários e
manifestações tiveram aparência de comício” (Rocha[2],
p.336).
O
próximo jogo seria com o atual campeão carioca (América) em seu estádio
recém-reformado (Campos Sales). “Ainda que aumentadas as dependências para o
público registram as crônicas, e podemos atestas de ciência própria porque
estávamos presentes a memorável peleja, o estadinho ficou superlotado. Não
sobrou um lugar. Muitos espectadores pagaram ingresso e não lograram ver o
desenrolar da partida” (p. 336).
Em
seguida veio o Fluminense no mais moderno estádio do país e local da competição
do Sul-Americano de 1919 e 1922. Recebeu “uma assistência igual senão superior
aos principais jogos do certame internacional” (p.337).
Encerrando
a campanha vitoriosa no primeiro turno o Vasco disputa com o São Cristóvão no
seu pequeno estádio em Figueira de Mello, revelando “toda assistência que ainda
uma vez concorreu a dar prova da incapacidade dos campos cariocas para acolher
o novo público de football da cidade” (p.339)
Desbancando
todos os seus adversários em sua estréia na competição principal, o Vasco que
já havia vencido o Flamengo no primeiro turno, continuava invicto no segundo
turno, até enfrentar o Flamengo novamente no estádio das Laranjeiras que ficou
lotado: “encheu o estádio do Fluminense, que nem enchera completamente no
Sul-Americano de 22 e que se pensava que nunca iria encher completamente. Em 23
o estádio do Fluminense era um Maracanã, sem exagero (...) dava gosto olhar
para as gerais apinhadas, para as arquibancadas que desciam até a pista
cercadas de grades de ferro, para as sociais estourando”. (Mario Filho, 1994,
p.41). Outra descrição desta partida confirma o recorde de público com lotação
máxima ou superlotação: “maior assistência até então registrada em jogos
locais. Gente nas arquibancadas, nas gerais e depois dentro do campo formando
uma completa arca humana” (Rocha, 1975, p.344).
Nenhum
outro clássico até então tinha despertado tanto interesse dos torcedores como
aquele jogo naquele dia[3]. O
estádio do Fluminense, o maior do Brasil, só tinha recebido um público
semelhante na final do campeonato Sul-americano em 1919, quando a cidade
“vestiu” um nacionalismo, através do futebol, sem precedentes. A explicação
para tamanho envolvimento emocional não cabe em apenas um motivo. Havia a
rivalidade trazida do remo, o antilusitanismo, o racismo, a invencibilidade do
Vasco etc.. Entretanto, afirmou o teórico Anatol Rosenfeld (1974, p.79), os
mesmos motivos de Mario Filho, com pitadas de racismo para aflorarem nesta
rivalidade: “... o Vasco da Gama, como instituição de elementos portugueses,
tornou-se representante desse numeroso grupo. Os encarniçados choques da
torcida de um clube que se afirmava puramente brasileiro, como o Flamengo, com
a torcida do Vasco, refletiam claramente, na esfera do jogo, o ressentimento
inconsciente do antigo povo colonial contra a hoje rica colônia portuguesa -
ressentimento aprofundado pelo fato de que o Vasco, seguindo a postura
tipicamente portuguesa de democracia racial, foi um dos primeiros clubes que, ainda
na época do amadorismo, reforçou seu time com elementos de cor, ao passo que o
Flamengo adotava, naquela época, uma política estritamente ‘branca’, o Vasco
tornou-se uma verdadeira potência, não só os portugueses mobilizaram-se em
torno dele com incrível paixão, mas também os homens de cor, que, através de sua participação num
“clube europeu” como que sentiam mais brancos”.
Em
uma grande reportagem da época, o Jornal das Moças mostra todo o significado da
vitória vascaína sem cair no reducionismo de que o Vasco era um time
“português”. A amplitude de sua vitória transcendia a este esfera embora esta
identidade fosse algo visto com muito orgulho pelos vascaínos que preferiam serem
vistos como pertencentes a um clube brasileiro que estava inaugurando uma nova
fase no futebol: “UM FEITO NUNCA D’ANTES VERIFICADO NO FOOTBALL CARIOCA. O glorioso e
veterano Club de Regatas Vasco da Gama pela sua força de vontade, valor
indiscutível de seu conjunto e disciplina, acaba de ser com justiça aclamado
Campeão Carioca de 1923. Essa vitória brilhante conquistada de maneira jamais
verificada no futebol brasileiro, foi fruto dos esforços e dedicação de uma
pleidade de rapazes, que, embora jovens nas lutas do associados, compreendem o
que venha a ser treino e disciplina no esporte. Vitimas de injustas e estúpidas
agressões por parte de elementos invejosos, o Vasco da Gama ascendeu a série
principal da Liga Metropolitana de Despostos Terrestres e entrou este ano na
Liga disposto a vencer. Mediu-se com os mais afamados conjuntos já veteranos e
laureados, e a todos abateu de uma forma esmagadora evidenciando sempre a sua
fortaleza e resistências aliadas a vontade e desejo de triunfar.(...) Estupenda
foi a sua trajetória dos embates oficiais do campeonato que hoje lhe pertence.
Um outro, porém enche de júbilo os vascaínos e da mais valor ao triunfo da
falange da Cruz de Malta, é o de haver sido este o primeiro ano que o onze
vascaíno disputou o campeonato. Pode-se pois, com isso dizer que o Vasco,
chegou viu e venceu. Estreante, mas preparado, não se intimidou-se e levou de
vencida os que reputavam difícil o seu triunfo, pela razão única de nunca se
ter visto façanha igual no futebol carioca. Mas o Vasco da Gama, já habituado
a conseguir o que só tem conseguido no esporte, desmentiu a previsão e
reproduziu o seu feito de 1905 no mar, quando correndo pela primeira vez no
Campeonato de Remo, levantou-o de modo assombroso com a sua esguia e legendária
Yole Procellaria. Esse feito, pois, que espantou a todos. Não representa
novidade para o querido e glorioso club da Cruz de Malta. O Jornal das Moças
querendo também render uma justa homenagem ao possante grêmio dos heróis da
temporada esportiva carioca, ora finda, dá hoje em sua pagina dupla sem virar
outro interesse que não seja o de coroar os esforços dos onzes valentes e
insuperáveis footballers do Vasco da Gama uma bela photografia dos mesmos. Salve
campeões da vontade e lealdade!Um hurrah! Ao Club de Regatas Vasco da Gama”[4].
Uma versão dominante desta partida
contada pelo torcedores do Flamengo destaca a atuação dos remadores do clube
que foram dispostos a intimidar os torcedores do Vasco e conseguiram. Achamos
improvável que tal fato tenha ocorrido a não ser em lugares isolados pois a
torcida vascaína tinha todas as condições de reagir até por experiencia própria
nos campeonatos dos anos anteriores. O que aconteceu foi a lenda da “valentia”
dos rubro-negros. Algo improvável. Eis a descrição dos conflitos segundo Mario
Filho: “Os remadores segurando as pás de remo, ainda se contendo, a ordem era
só meter pá de remo na cabeça de português depois que o jogo começasse (...) estava
na frente do Campeonato, sem uma derrota. Tinha que perder, pelo menos uma vez
de qualquer maneira. O Flamengo não se prepara durante a semana para outra coisa.
Treinando todo dia, dormindo cedo, pondo a garage em pé de guerra. Também
quando o jogo começa o Flamengo tomou conta do campo, da arquibancada, da
geral, de tudo. Flamengo um a zero, pás de remo embrulhadas em Jornal do Brasil
batendo nas cabeças dos vascaínos, Flamengo dois a zero e novamente as pás de
remo subindo e descendo. Quem era Vasco não tinha direito de abrir a boca.... O
Flamengo deixara de ser um Clube, um time, era todos os Clubes, todos os times,
o futebol brasileiro branquinho, de boa família. Tudo estava naqueles dois a
zero, os pretos não tinham nem dado para a saída...Foi começar o segundo tempo,
gol do Vasco. E os vascaínos sem poder gritar gol. Um gritozinho, uma pá de
remo na cabeça, Só se gritava Flamengo, o Flamengo acabou marcando mais um
gol....” O jogo chegou a ficar três a dois para o Flamengo e um gol suspeito
não foi validado para o Vasco: “Ai os vascaínos da geral, da arquibancada, não
quiseram saber de mais nada, de pá de remo na cabeça, fosse o que fosse.
Sururus explodiam, aqui e ali, como pipocas. Soldados corriam de sabre
desembainhando, de um lado para o outro, a cavalaria invadiu o campo. Não
adiantava brigar, o Flamengo tinha de vencer custasse o que custasse. Depois do
jogo dava pena olhar para o campo do Fluminense. O povo tinha quebrado as
grades de ferro, a cavalaria tinha esburacado o gramado todo...” O Vasco também
fez sua represaria: “ A Sede do Flamengo apareceu pichada, de cima para baixo.
Coisa de torcedores exaltados. Qual era o Clube que não tinha torcedores
exaltados” (...) O futebol, um “turbilhão das emoções violentas”, unia a elite
do Rio de Janeiro contra o time dos portugueses, o time do povo do Rio de
Janeiro. A derrota do Vasco por 3 x 2 foi a vitória da elite, dos incluídos,
cujos Clubes comemoraram a vitória, muito mais do que fosse um campeonato. Era
necessário derrubar o time dos “pretos”, expressão de Mário Filho, colocá-los
no seu devido lugar e mostrar que futebol para gente importante. Numa das
partes do livro, ele dá uma idéia do que houve depois do jogo. “Foi um
carnaval. Mais de cem automóveis desfilaram pela cidade seguindo o itinerário
da Praia do Flamengo, Glória, Largo da Lapa, para jogar bombas na Capela, Av.
Mem de Sá, Rua Evaristo da Veiga, Av. Rio Branco, Rua Larga, Praça da República,
Rua Visconde de Itaúna e Praça Onze, assim como para jogar bombas na Cervejaria
Vitória, onde os Vascaínos gostavam de festejar seus triunfos. A Cervejaria
Vitória na Praça Onze, teve de fechar as pressas. As cabeças de negro,
mosteiros, batiam nas portas de aço ricocheteando (....) O Cortejo continuou,
durante toda a noite, o Flamengo festejou a vitória. E quando se ia desfazer o
cortejo, alta madrugada, pendurou-se o tamanco de dois metros e meio na porta
da Sede do Vasco, em Santa Luzia. Achou-se pouco. Comprou-se uma enorme coroa
funerária no Mercado das Flores. A coroa ficou ao lado do tamanco, E, como se
isso não bastasse, enfeitou-se a estátua de Pedro Álvares Cabral de tamancos e
resteas de cebola” (Mario Filho, 2003, p.125-126).
Diferentemente de 1921 quando a
seleção brasileira enviou uma delegação sem nenhum jogador negro a pedido do
presidente da República, Epitacio Pessoa, neste ano o goleiro da seleçao era o
arqueiro campeão pelo Vasco, Nelson Conceição que fazia a sua estreia e seria o
primeiro jogador negro do Vasco na seleção brasileira junto de outros tres
jogadores vascaínos (Bolão, Torterolli e Paschoal) que também participaram da
seleção carioca pelo campeonato nacional brasileiro. Competição que envolvia a
seleção de cada estado com a final no Rio de Janeiro.
Porém, nos bastidores os dirigentes dos grandes clubes já tramavam desde
o final de 1923 novas regras para um clube pertencer a elite do futebol carioca
e, talvez, criar uma nova liga de futebol.
Fonte: Livro “100
anos da Torcida Vascaína”, escrito pelo historiador Jorge Medeiros.
[1] Segundo o censo de 1920, a população total da capital federal chegava a
1.157.873 habitantes, dos quais 172.338 portugueses, ou seja, 14,88% do total.
Fonte: IBGE.
[2] Todas as próximas citações
serão do livro de ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama:
Histórico (1898-1923). Rio de Janeiro: Ed. Gráfica Olímpica, 1975.
[3]
Logo após a vitória do Flamengo sobre o Vasco em 1923, mais de 100 automóveis
desfilavam pela cidade em um autêntico desfile de carnaval. O objetivo era
percorrer ruas e bares freqüentados por torcedores do Vasco para jogarem bombas
(FILHO, 1994, p. 42).
[4] Fonte: Jornal das Moças 23 de Agosto de 1923.
Vasco Revista O Malho 1923 |
Vasco Revista O Malho 1923 |
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