“É ou não é/ piada de salão/
um time de urubu/ querer ser campeão”
canto da torcida
1969
Surge o Bacalhau
A
década de 1960 foi realmente inesquecível para o Botafogo. Não era à toa que
todos apontavam para o crescimento de sua torcida entre os jovens naquele
período. Depois da geração de Garrincha, Didi e Nilton Santos, o alvinegro
apresentava uma nova brilhante geração liderada por Jairzinho, Gerson e Paulo
Cesar. Bicampeão carioca em 1967-68, o clube também sustentava o bicampeonato
no basquete (2° esporte preferido na época). Ou seja, não faltavam motivos para
todos os outros clubes quererem derrotar o Botafogo.
Em
janeiro, Vasco e Botafogo duelavam em três partidas emocionantes nas finais do
campeonato de basquete. Com recorde de público nacional nos dois últimos jogos,
a equipe vascaína perde a terceira e última partida. A tristeza dos vascaínos
(maioria nos ginásios) e a gozação dos alvinegros vai alimentar um desejo de
vingança dos vascaínos ao longo de 1969.
O sucesso do Botafogo era somado com
a escolha da CBD de João Saldanha para comandar a seleção brasileira que
disputaria as Eliminatórias[1] da Copa do Mundo de 1970
no México. Saldanha era profundamente identificado com o Botafogo, seja como
ex-técnico e ex-dirigente. Ao assumir o comando logo escalou as suas “feras”. Entre
elas, o zagueiro vascaíno Brito.
Eram tempos estranhos. Enquanto o
Brasil tinha um técnico da seleção, fã do proibido PCB, o governo militar
perseguia os comunistas. No jogo de abertura do Maracanã em 1969, o Vasco
enfrentava justamente a seleção da URSS (líder do bloco comunista mundial). A
derrota para os soviéticos já demonstrava que o ano de 1969 não seria fácil.
Veio o campeonato carioca (considerado
um dos mais emocionantes de todos os tempos) e o imenso público prestigiava a
competição com grandes rendas. Justamente este era o tema do filme “ A Máscara
da Traição”, filmado com cenas reais no Maracanã mostrando os times em campo e
a batalha nas arquibancadas nos clássicos entre Flamengo e Botafogo e o Vasco
enfrentando o Fluminense[2].
Em maio, no Dia das Mães, o Vasco
apresentava a sua torcida a maior contratação daquele ano. Era a estréia do
goleiro argentino Andrada. E não foi
como esperávamos. Diante de quase 90 mil torcedores, o Vasco é derrotado
pelo Flamengo por 3 a 0. Logo uma crise de relacionamento se instaura entre a torcida do Vasco e o presidente
Reinaldo Reis. Daí apareciam as novas fissuras entre as duas principais
torcidas, a TOV (oficial) e a Leões Vascaínos (chamada de torcida
dissidente).
As divergências entre as duas
maiores lideranças Dulce (TOV) e Abílio
(Leões Vascaínos) não se restringiam somente em relação a oposição ao
presidente do clube. Abílio cobrava de Dulce manifestações contra o dirigente e
o afastamento de torcedores afeminados. Dulce não concorda com as posições de
Abílio. O racha na torcida chega aos jornais. Um assunto perfeito para o
cartunista Henfil, que mostra nos desenhos dois representantes da torcida do
Vasco: um machão (Abílio) e um afeminado ( chamado de “fala fino”).
A briga interna foi o motivo de
muitas reportagens do Jornal dos Sports[3] em todo o mês de maio: “o fogo da revolução lançado
pela torcida do Vasco foi tão violento que atingiu os seus próprios
integrantes. Ontem em São Januário, a guerra já era mais contra o técnico, os
dirigentes e os jogadores. Era entre os próprios torcedores. Como a Dissidência
agora virou moda também entre os torcedores, uma ala quer desligar-se da
liderança de Dulce (TOV) para organizar seu próprio grupo. O líder do motim
contra Dulce Rosalina é Abílio Valente, um nome muito sugestivo, segundo seus
aliados. O novo grupo já deve estrear amanhã e promete levar para o Estádio
Mário Filho o slogan: “Abílio Valente lidera Torcida Dissidente”, se Dulce não
afastar os “fala-fino” que engrossam a Torcida Organizada[4].
No final do mês é feito uma trégua
entre Abílio e o presidente, mas as divergências com Dulce persistiam: “Abílio
Valente, o Chefe rebelde da Torcida Dissidente, foi visitar ontem o Presidente
Reinaldo Reis para hipotecar o seu apoio ao clube, e ouviu do Presidente
palavras de incentivo e ao mesmo tempo de paz, pedindo inclusive sua união com
Dulce Rosalina, Abílio aceitou, mas impôs uma condição: “Só se a Dulce sumir
com as bonecas, seu Presidente. Sou um gajo de respeito não quero, na rua, ser
confundido”[5].
A intensa rivalidade entre os
torcedores dos principais clubes cariocas e os xingamentos mútuos acabaram por
virarem símbolos dos próprios clubes. Daí apareceram nas charges de Henfil, o
Bacalhau e o Urubu.
Como
o rubro-negro era o time mais popular entre negros e pobres, os torcedores dos
clubes rivais chamavam os rubro-negros pejorativamente de urubus. Ninguém sabe exatamente como surgiu o urubu para designar
os torcedores do Flamengo. O certo é que, até este ano, dava briga chamar
alguém, por este nome
Até
então o urubu não era um símbolo incorporado pelos flamenguistas, provocando
confusão e revoltas. Porém, num jogo entre Flamengo e Botafogo em 1969 os
torcedores do Flamengo soltam um urubu vivo em campo. Como resultado daquele jogo
acabou sendo favorável ao Flamengo (2 a 1), a partir daquele momento mudava-se
o símbolo: para os rubro-negros o urubu passaria a significar a popularidade do
Flamengo. Quando o cartunista Henfil trocou o símbolo do Flamengo do
marinheiro Popeye para o urubu a torcida do Flamengo começou a mudar de
postura, pois já havia incorporado seu novo mascote.
Henfil
criou o urubu e o bacalhau como mascotes mas estes já existiam nas ofensas
entre os torcedores. Na confecção do desenho, Henfil pode ter buscado inspiração
na figura de Abílio, líder da torcida dissidente Leões Vascaínos. “Na
configuração dos times de massa, Henfil costumava atribuir ao Bacalhau uma
característica mais intelectual nas ações da República de Ramos. É ele, e não o
Urubu, quem costuma idealizar planos de reação, redigindo e lendo os discursos
de protesto que justificavam as ações. Henfil procurou frisar a ignorância do
Urubu para ressaltar seu pertencimento ao clube mais identificado com as
massas” (Pessoa, 2013).
Na
noite de 7 junho as torcidas de Vasco e Flamengo se uniram contra a torcida do
Botafogo. Uma estranha aliança já que os dois clubes sempre foram os maiores
rivais entre si. Entretanto, a conjuntura favorável ao Botafogo acabou por promover esta aliança no estádio. Não só
através dos incentivos ao time do Vasco contra o Botafogo, mas a violência: “foi
uma noite, assim, da maior selvageria, sobretudo na platéia. A torcida do
Flamengo uniu-se a do Vasco e juntas queimavam as bandeiras do Botafogo, além
de enxortar a sua Torcida. E o Maracanã em peso clamava: “Cadê o Tri”, “Cadê o
Tri”. Terminando na base de Celito Lindo, ou melhor , “Está Chegando a Hora,
meu bem...”[6].
Pouco
depois o Vasco enfrenta o Flamengo e a aliança da torcida do vascaína foi com
os tricolores. Numa rodada dupla no Maracanã, Fluminense e Bonsucesso fizeram a
preliminar para o “Clássico das Multidões”, juntando mais 130 mil pagantes. Com
os resultados (vitória do Fluminense e empate do Vasco), o clube das
Laranjeiras praticamente garantia o título carioca daquele ano.
Em
julho, a importante revista semanal Realidade faz uma grande reportagem de
cinco páginas sobre o Vasco, com a manchete “O Vasco é a Massa”, exaltando a
participação da torcida na construção do seu estádio e a fidelidade mesmo na
adversidade: “há dez anos não levanta o título, mas é sempre um dos campeões de
renda no Rio. A torcida fascinada por sua mística jamais o abandona”. Dividida
em várias partes, escritas pelo jornalista Marcos de Castro, as matérias enfatizavam, pela primeira vez numa revista
nacional, a importância do Vasco na luta por inserir negros, operários e pobres
no futebol. São destacados ainda os famosos vascaínos (Roberto Carlos, Edu
Lobo, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond, entre outros) e os tradicionais
torcedores de arquibancada ( Dulce, Ramalho e Cartola).
No segundo semestre com a Taça de Prata o Vasco vinha
fazendo uma péssica campanha[7]. O
apoio de DulceRosalina ao presidente do clube dura até outubro quando a força
do movimento oposiconista realiza grandes protestos. A imprensa registrava o
clima de revolta: “FORA REINALDO A medida que o tempo passava, os torcedores
chegavam ao estádio. A facção denominada Leões Vascaínos levou uma faixa com os
seguintes dizeres:“Ciro, Valdir, Paulinho, os Leões te saúdam.”Os gritos “Fora
Reinaldo”, “Fora Reinaldo”, se ouviam nos quatros cantos de são Januário. Cerca
de 300 torcedores invadiram ontem o Estádio de São Januário, demostrando sua
insatisfação diante dos acontecimentos que se sucederam ao término do jogo de
domingo, entre Vasco e Botafogo e tiveram como conseqüência mais grave a
renuncia de todo o Departamento de Futebol, e do Técnico Paulinho. As Torcidas
chefiadas por Dulce Rosalina (TOV) e Abílio Valente (Leões Vascaínos)
esqueceram por instantes as suas divergências e formaram uma espécie de frente
ampla de apoio a Ciro Aranha e Paulinho e de repudio a continuidade do Sr
Reinaldo Reis na Presidencia do Clube. Os torcedores presentes, todos
associados do Vasco, ficaram de pé na pista de atletismo, protestando contra o
Presidente e exigindo a permanência de Ciro Aranha na Vice Presidencia de
Futebol. Abílio Valente, Chefe da facção Leões Vascaínos, liderou um manifesto
com uma lista de Conselheiros”[8].
Pela
primeira vez em sua historia um presidente de Vasco era deposto em função de
diversas acusações. O presidente Reinaldo Reis saía do cargo após inúmeras
manifestações de conselheiros e torcedores. Este não seria o primeiro
presidente de clube a enfrentar problemas nos conturbados “anos rebeldes”.
Ainda em 1968 o presidente do Flamengo enfrentou uma série de manifestações dos
torcedores, assim como em 1969 o presidente do Corinthians seria derrubado e as
torcidas do Fluminense participariam ativamente na escolha do presidente
(Hollanda, 2010).
O
ano estava terminando e o Vasco com nove derrotas consecutivas enfrentava o
Santos no Maracanã. Aquela seria uma partida histórica para os vascaínos e
todos os brasileiros que torceram juntos para Pelé marcar o seu milésimo gol.
Ele veio de pênalti. Todos mais de 65 mil torcedores no estádio ( inclusive a
nossa torcida) vibrou com aquela marca. Depois do gol, Pelé dá uma volta ao
redor do gramado vestindo uma camisa do Vasco com o número 1000 às costas e é
aplaudido por todos os 50 mil torcedores.
O
fim do ano estava chegando e a esperança dos vascaínos seria que tudo mudaria
com uma nova década. A expectativa por novos tempos vinha com a conquista do
campeonato carioca de juvenis em 1969. Depois de 15 anos, nosso clube voltava a
ser campeão desta categoria. Na última partida, os vascaínos encheram o pequeno
estádio do Olaria para comemorar um título em um ano de poucas alegrias.
[1] em 1969, o Brasil conquistou vitórias avassaladoras, como no
último jogo contra o Paraguai que proporcionou o maior público pagante da
história do Maracanã, contando com a presença de mais de 189.000 pessoas
[2] Vasco x Fluminense
foi disputado no dia 21 de abril para um público de mais de 100 mil pessoas.
[3] Outros jornais ja noticiavam também, como o Diário de
Notícias, em 30 de março: “efetivou-se,
como já se esperava, a cisão na Torcida Vascaína, ainda em conseqüência da
derrota do último domingo, ante o Flamengo, ficando Abílio Valente com a parte
dissidente (Leões Vascaínos) e Dulce Rosalina continua como Chefe da Torcida
Organizada (TOV). O motivo: Abílio queria que Dulce ficasse com ele, contra o
Presidente Reinaldo Reis e o Técnico Evaristo de Macedo”.
[4]
Fonte: Jornal dos Sports 16 de maio de 1969.
[5]
Fonte: Jornal dos Sports, 22 de maio de 1969.
[6] Fonte:
Jornal Correio da Manhã 07 de Junho de 1969.
[7] Em
carta para seu neto, o poeta vascaíno Carlos Drummond de Andrade
desabafa: “continuo sendo um vascaínos sofredor” ( Drummond, 2002, p.228).
Fonte: Livro “100
anos da Torcida Vascaína”, escrito pelo historiador Jorge Medeiros.
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