quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

VASCO 2017: LIVRO "100 ANOS DA TORCIDA VASCAÍNA", 1969 SURGE O BACALHAU

                       “É ou não é/ piada de salão/ um time de urubu/ querer ser campeão”
                                                         canto da torcida

1969                           Surge o Bacalhau

A década de 1960 foi realmente inesquecível para o Botafogo. Não era à toa que todos apontavam para o crescimento de sua torcida entre os jovens naquele período. Depois da geração de Garrincha, Didi e Nilton Santos, o alvinegro apresentava uma nova brilhante geração liderada por Jairzinho, Gerson e Paulo Cesar. Bicampeão carioca em 1967-68, o clube também sustentava o bicampeonato no basquete (2° esporte preferido na época). Ou seja, não faltavam motivos para todos os outros clubes quererem derrotar o Botafogo.
Em janeiro, Vasco e Botafogo duelavam em três partidas emocionantes nas finais do campeonato de basquete. Com recorde de público nacional nos dois últimos jogos, a equipe vascaína perde a terceira e última partida. A tristeza dos vascaínos (maioria nos ginásios) e a gozação dos alvinegros vai alimentar um desejo de vingança dos vascaínos ao longo de 1969.
            O sucesso do Botafogo era somado com a escolha da CBD de João Saldanha para comandar a seleção brasileira que disputaria as Eliminatórias[1] da Copa do Mundo de 1970 no México. Saldanha era profundamente identificado com o Botafogo, seja como ex-técnico e ex-dirigente. Ao assumir o comando logo escalou as suas “feras”. Entre elas, o zagueiro vascaíno Brito.
            Eram tempos estranhos. Enquanto o Brasil tinha um técnico da seleção, fã do proibido PCB, o governo militar perseguia os comunistas. No jogo de abertura do Maracanã em 1969, o Vasco enfrentava justamente a seleção da URSS (líder do bloco comunista mundial). A derrota para os soviéticos já demonstrava que o ano de 1969 não seria fácil.
            Veio o campeonato carioca (considerado um dos mais emocionantes de todos os tempos) e o imenso público prestigiava a competição com grandes rendas. Justamente este era o tema do filme “ A Máscara da Traição”, filmado com cenas reais no Maracanã mostrando os times em campo e a batalha nas arquibancadas nos clássicos entre Flamengo e Botafogo e o Vasco enfrentando o Fluminense[2]
            Em maio, no Dia das Mães, o Vasco apresentava a sua torcida a maior contratação daquele ano. Era a estréia do goleiro argentino Andrada. E não foi  como esperávamos. Diante de quase 90 mil torcedores, o Vasco é derrotado pelo Flamengo por 3 a 0. Logo uma crise de relacionamento se instaura  entre a torcida do Vasco e o presidente Reinaldo Reis. Daí apareciam as novas fissuras entre as duas principais torcidas, a TOV (oficial) e a Leões Vascaínos                (chamada de torcida dissidente).
            As divergências entre as duas maiores lideranças Dulce (TOV) e Abílio   (Leões Vascaínos) não se restringiam somente em relação a oposição ao presidente do clube. Abílio cobrava de Dulce manifestações contra o dirigente e o afastamento de torcedores afeminados. Dulce não concorda com as posições de Abílio. O racha na torcida chega aos jornais. Um assunto perfeito para o cartunista Henfil, que mostra nos desenhos dois representantes da torcida do Vasco: um machão (Abílio) e um afeminado ( chamado de “fala fino”).
            A briga interna foi o motivo de muitas reportagens do Jornal dos Sports[3] em todo o  mês de maio: “o fogo da revolução lançado pela torcida do Vasco foi tão violento que atingiu os seus próprios integrantes. Ontem em São Januário, a guerra já era mais contra o técnico, os dirigentes e os jogadores. Era entre os próprios torcedores. Como a Dissidência agora virou moda também entre os torcedores, uma ala quer desligar-se da liderança de Dulce (TOV) para organizar seu próprio grupo. O líder do motim contra Dulce Rosalina é Abílio Valente, um nome muito sugestivo, segundo seus aliados. O novo grupo já deve estrear amanhã e promete levar para o Estádio Mário Filho o slogan: “Abílio Valente lidera Torcida Dissidente”, se Dulce não afastar os “fala-fino” que engrossam a Torcida Organizada[4].
            No final do mês é feito uma trégua entre Abílio e o presidente, mas as divergências com Dulce persistiam: “Abílio Valente, o Chefe rebelde da Torcida Dissidente, foi visitar ontem o Presidente Reinaldo Reis para hipotecar o seu apoio ao clube, e ouviu do Presidente palavras de incentivo e ao mesmo tempo de paz, pedindo inclusive sua união com Dulce Rosalina, Abílio aceitou, mas impôs uma condição: “Só se a Dulce sumir com as bonecas, seu Presidente. Sou um gajo de respeito não quero, na rua, ser confundido”[5].
            A intensa rivalidade entre os torcedores dos principais clubes cariocas e os xingamentos mútuos acabaram por virarem símbolos dos próprios clubes. Daí apareceram nas charges de Henfil, o Bacalhau e o Urubu.
Como o rubro-negro era o time mais popular entre negros e pobres, os torcedores dos clubes rivais chamavam os rubro-negros pejorativamente de urubus. Ninguém sabe exatamente como surgiu o urubu para designar os torcedores do Flamengo. O certo é que, até este ano, dava briga chamar alguém, por este nome
Até então o urubu não era um símbolo incorporado pelos flamenguistas, provocando confusão e revoltas. Porém, num jogo entre Flamengo e Botafogo em 1969 os torcedores do Flamengo soltam um urubu vivo em campo. Como resultado daquele jogo acabou sendo favorável ao Flamengo (2 a 1), a partir daquele momento mudava-se o símbolo: para os rubro-negros o urubu passaria a significar a popularidade do Flamengo. Quando o cartunista Henfil trocou o símbolo do Flamengo do marinheiro Popeye para o urubu a torcida do Flamengo começou a mudar de postura, pois já havia incorporado seu novo mascote.
Henfil criou o urubu e o bacalhau como mascotes mas estes já existiam nas ofensas entre os torcedores. Na confecção do desenho, Henfil pode ter buscado inspiração na figura de Abílio, líder da torcida dissidente Leões Vascaínos. “Na configuração dos times de massa, Henfil costumava atribuir ao Bacalhau uma característica mais intelectual nas ações da República de Ramos. É ele, e não o Urubu, quem costuma idealizar planos de reação, redigindo e lendo os discursos de protesto que justificavam as ações. Henfil procurou frisar a ignorância do Urubu para ressaltar seu pertencimento ao clube mais identificado com as massas” (Pessoa, 2013).
Na noite de 7 junho as torcidas de Vasco e Flamengo se uniram contra a torcida do Botafogo. Uma estranha aliança já que os dois clubes sempre foram os maiores rivais entre si. Entretanto, a conjuntura favorável ao Botafogo acabou por  promover esta aliança no estádio. Não só através dos incentivos ao time do Vasco contra o Botafogo, mas a violência: “foi uma noite, assim, da maior selvageria, sobretudo na platéia. A torcida do Flamengo uniu-se a do Vasco e juntas queimavam as bandeiras do Botafogo, além de enxortar a sua Torcida. E o Maracanã em peso clamava: “Cadê o Tri”, “Cadê o Tri”. Terminando na base de Celito Lindo, ou melhor , “Está Chegando a Hora, meu bem...”[6].
Pouco depois o Vasco enfrenta o Flamengo e a aliança da torcida do vascaína foi com os tricolores. Numa rodada dupla no Maracanã, Fluminense e Bonsucesso fizeram a preliminar para o “Clássico das Multidões”, juntando mais 130 mil pagantes. Com os resultados (vitória do Fluminense e empate do Vasco), o clube das Laranjeiras praticamente garantia o título carioca daquele ano.
Em julho, a importante revista semanal Realidade faz uma grande reportagem de cinco páginas sobre o Vasco, com a manchete “O Vasco é a Massa”, exaltando a participação da torcida na construção do seu estádio e a fidelidade mesmo na adversidade: “há dez anos não levanta o título, mas é sempre um dos campeões de renda no Rio. A torcida fascinada por sua mística jamais o abandona”. Dividida em várias partes, escritas pelo jornalista Marcos de Castro, as matérias  enfatizavam, pela primeira vez numa revista nacional, a importância do Vasco na luta por inserir negros, operários e pobres no futebol. São destacados ainda os famosos vascaínos (Roberto Carlos, Edu Lobo, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond, entre outros) e os tradicionais torcedores de arquibancada ( Dulce, Ramalho e Cartola).
No segundo semestre com a Taça de Prata o Vasco vinha fazendo uma péssica campanha[7]. O apoio de DulceRosalina ao presidente do clube dura até outubro quando a força do movimento oposiconista realiza grandes protestos. A imprensa registrava o clima de revolta: “FORA REINALDO A medida que o tempo passava, os torcedores chegavam ao estádio. A facção denominada Leões Vascaínos levou uma faixa com os seguintes dizeres:“Ciro, Valdir, Paulinho, os Leões te saúdam.”Os gritos “Fora Reinaldo”, “Fora Reinaldo”, se ouviam nos quatros cantos de são Januário. Cerca de 300 torcedores invadiram ontem o Estádio de São Januário, demostrando sua insatisfação diante dos acontecimentos que se sucederam ao término do jogo de domingo, entre Vasco e Botafogo e tiveram como conseqüência mais grave a renuncia de todo o Departamento de Futebol, e do Técnico Paulinho. As Torcidas chefiadas por Dulce Rosalina (TOV) e Abílio Valente (Leões Vascaínos) esqueceram por instantes as suas divergências e formaram uma espécie de frente ampla de apoio a Ciro Aranha e Paulinho e de repudio a continuidade do Sr Reinaldo Reis na Presidencia do Clube. Os torcedores presentes, todos associados do Vasco, ficaram de pé na pista de atletismo, protestando contra o Presidente e exigindo a permanência de Ciro Aranha na Vice Presidencia de Futebol. Abílio Valente, Chefe da facção Leões Vascaínos, liderou um manifesto com uma lista de Conselheiros”[8].
Pela primeira vez em sua historia um presidente de Vasco era deposto em função de diversas acusações. O presidente Reinaldo Reis saía do cargo após inúmeras manifestações de conselheiros e torcedores. Este não seria o primeiro presidente de clube a enfrentar problemas nos conturbados “anos rebeldes”. Ainda em 1968 o presidente do Flamengo enfrentou uma série de manifestações dos torcedores, assim como em 1969 o presidente do Corinthians seria derrubado e as torcidas do Fluminense participariam ativamente na escolha do presidente (Hollanda, 2010).
O ano estava terminando e o Vasco com nove derrotas consecutivas enfrentava o Santos no Maracanã. Aquela seria uma partida histórica para os vascaínos e todos os brasileiros que torceram juntos para Pelé marcar o seu milésimo gol. Ele veio de pênalti. Todos mais de 65 mil torcedores no estádio ( inclusive a nossa torcida) vibrou com aquela marca. Depois do gol, Pelé dá uma volta ao redor do gramado vestindo uma camisa do Vasco com o número 1000 às costas e é aplaudido por todos os 50 mil torcedores.
O fim do ano estava chegando e a esperança dos vascaínos seria que tudo mudaria com uma nova década. A expectativa por novos tempos vinha com a conquista do campeonato carioca de juvenis em 1969. Depois de 15 anos, nosso clube voltava a ser campeão desta categoria. Na última partida, os vascaínos encheram o pequeno estádio do Olaria para comemorar um título em um ano de poucas alegrias.



[1] em 1969, o Brasil conquistou vitórias avassaladoras, como no último jogo contra o Paraguai que proporcionou o maior público pagante da história do Maracanã, contando com a presença de mais de 189.000 pessoas
[2] Vasco x Fluminense foi disputado no dia 21 de abril para um público de mais de 100 mil pessoas.
[3] Outros jornais  ja noticiavam também, como o Diário de Notícias, em 30 de março: “efetivou-se, como já se esperava, a cisão na Torcida Vascaína, ainda em conseqüência da derrota do último domingo, ante o Flamengo, ficando Abílio Valente com a parte dissidente (Leões Vascaínos) e Dulce Rosalina continua como Chefe da Torcida Organizada (TOV). O motivo: Abílio queria que Dulce ficasse com ele, contra o Presidente Reinaldo Reis e o Técnico Evaristo de Macedo”.
[4] Fonte: Jornal dos Sports 16 de maio de 1969.
[5] Fonte: Jornal dos Sports, 22 de maio de 1969.
[6] Fonte: Jornal Correio da Manhã 07 de Junho de 1969.
[7] Em carta para  seu neto, o poeta vascaíno Carlos Drummond de Andrade desabafa: “continuo sendo um vascaínos sofredor” ( Drummond, 2002, p.228).
[8]  Fonte: Jornal do Brasil 15 de Outubro de 1969.
 Fonte: Livro “100 anos da Torcida Vascaína”, escrito pelo historiador Jorge Medeiros.


Vasco Jornal do Brasil 1969

Vasco Revista Realidade 1969


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