“somente um
interesse apaixonado pode levar o sujeito a existir plenamente”
Kieerkgaard
1970 A
Força dos Leões
A crise política no clube que culminou com a saída do
Presidente Reynaldo Reis no fim de 1969, sendo substituído por Agathyrno da
Silva Gomes, demonstrava como a ausência de títulos em todos os anos 1960 (o
último carioca foi em 1958) afetou por completo o ambiente da agremiação
esportiva. Dentro e fora do campo a tensão permanente gerou inúmeras desconfianças
em relação ao início de ano de 1970.
A
maior novidade do mercado editorial em 1970 era o lançamento da Revista Placar,
pela editora Abril. Embora estivéssemos na Época de Ouro do Futebol Brasileiro
não havia nenhuma revista especializada em esportes neste ano. A última revista
que fez relativo sucesso era Revista do Esporte (1959-1970) que saía pela
última vez ainda em 1970, mas já dava sinais de esgotamento desde 1968.
Apesar
de adotar uma linha editorial ao privilegiar o futebol paulista, Placar se
tornou referência para os torcedores de todo o pais, graças ao talento da
equipe de repórteres que a revista reuniu ao longo dos anos. Apesar da ditadura
e da censura imperando na imprensa, havia espaço no periódico para a crítica
sobre os poderosos no futebol.
Mas
o grande sonho dos torcedores a partir de 1970 era se tornar milionário com a
criação da loteria esportiva. Semanalmente os apostadores jogavam e
acompanhavam os 13 palpites dos jogos dos campeonatos regionais. Em 1971, o
campeonato nacional daria novo incentivo para os apostadores conhecerem o
futebol nacional com mais interesse.
Enquanto a seleção brasileira treinada por João
Saldanha se estruturava para o campeonato mundial no México, o Vasco iniciava
os preparativos para a Taça Guanabara e para o campeonato regional com um novo
técnico (Tim) ciente do desafio de encontrar um clube em ebulição e uma torcida
carente de títulos.
O clube da Colina procurava reforços e um deles
poderia vir da Europa. Antes de ser demitido e substituído por Zagalo, o
técnico João Saldanha escreve uma coluna no jornal O Globo declarando o seu
apoio na tentativa do presidente do Vasco trazer o maior craque da história de
Portugal para o seu clube. O passe de Eusébio estava avaliado em 160 milhões.
Dinheiro que o clube carioca tentava arrecadar através de uma “vaquinha”. O
próprio Saldanha promete ajudar, mas revela, de forma infeliz como ele vê a
torcida cruzmaltina: “agora vocês vão dizer; o que é que você tem com isso?
Você não é Vasco, não é português (...) O Vasco tem de levar novamente a
colônia portuguesa para dentro do Maracanã. Ela já está fora há algum tempo e,
para o Vasco da Gama eu creio que isso é perigossíssimo” (Saldanha, 2006, p.
110). O resultado é que nem o atacante veio para o Vasco, nem Saldanha continuou
na seleção.
Desde 1923 quando os cruzmaltinos passaram a disputar
o campeonato carioca da primeira divisão aquele era o período de maior jejum de
conquistas, como revela a manchete da reportagem: “Torcida perde a paciência
após 11 anos sem títulos” (23-02-70). A matéria é sobre a recém-criada torcida
organizada Força Jovem do Vasco, que através de uma carta pública pede ao novo
presidente uma reunião com o técnico e com um jogador. Uma situação no mínimo
paradoxal para os padrões daqueles Anos de Chumbo com a pressão de uma torcida
para o presidente já que era o auge de repressão do regime militar (1964-1985)
onde qualquer manifestação de protesto era terminantemente proibida após a
decretação do AI-5, em dezembro de 1968.
No entanto, no futebol este Ato não teve o efeito devastador que atingiu a
sociedade pois desde os fins dos anos 1960 (particularmente a partir de 1967)
que as torcidas organizadas cariocas resolveram mudar sua atitude de apoio
incondicional ao clube e passaram a se comportar de forma mais crítica e
incorporando palavras, atitudes e gestos dos movimentos sociais de contestação
ao regime militar. Os protestos nas arquibancadas tinham como alvo não somente
os dirigentes, como técnicos e jogadores do clube do coração.
Enquanto a Torcida Organizada do Vasco (TOV) chefiada
por Ely Mendes na ausência de Dulce Rosalina (torcedora-símbolo e liderança
desde 1956), que se recuperava de um acidente no ônibus da torcida durante uma
caravana para São Paulo em 1968, outros torcedores se movimentavam para
organizar suas própria torcidas e/ou apoiarem atos de protestos contra os
fracassos sucessivos nos últimos anos.
As novas torcidas organizadas do Vasco surgiram ainda
em 1968. Se em Paris o mês de maio viu as ruas pegarem fogo nos inúmeros
protestos dos estudantes contra o governo francês, em São Januário, o rastilho
de pólvora chegava em 14 de maio com a criação da Torcida Disssidente,
intitulada Leões Vascaínos, criada no embalo das manifestações de rua na cidade
do Rio de Janeiro, no período anterior ao AI-5. Para Zuenir Ventura, autor do
livro 1968, o ano que não acabou, é difícil encontrar uma explicação para
tantas revoltas ao mesmo tempo: “movida por até hoje uma misteriosa sintonia de
inquietação e anseios, a juventude de todo o mundo parecia iniciar uma
revolução planetária” (2013, p.75).
O português Abílio Machado era o principal líder da
torcida Leões Vascaínos que, junto de vários outros torcedores (principalmente
da região da Tijuca) e de vários associados do clube, romperam com a ideia de
uma torcida por clube. Este movimento já vinha ocorrendo na mesma intensidade
nos outros clubes com o surgimento de Torcidas Jovens.
Abílio foi um dos principais articuladores do
movimento que provocou a saída do presidente Reynando Reis em 1969. Pouco tempo
depois, em fevereiro de 1970, um outro grupo de vascaínos da região do Grande
Méier se reúne para fundar sua própria torcida. As primeiras reuniões
aconteceram ainda em 1969 e tiveram como base inicial uma casa na rua Cônego
Tobias, onde residia um médico conhecido da região e frequentador assíduo do
Maracanã.
A Força Jovem e os Leões Vascaínos se colocavam nas
arquibancadas atrás do gol, no Maracanã, bem distante da TOV que ficava sempre
no início do lado direito das cadeiras especiais e tribuna de honra. Juntas e
separadas as duas torcidas tinham momentos em que se uniam e se separavam. Em
seção de cartas dos leitores é possível perceber que se travava um duelo
amigável de quem teria a hegemonia dos jovens torcedores vascaínos,
insatisfeitos com o clube o a torcida oficial.
Seja nas arquibancadas onde o duelo era de quem
incentivava ou protestava mais ou nos jornais, ambas se acusavam de não serem
totalmente independentes e de ainda viverem de favores dos dirigentes do clube.
Iniciado o campeonato carioca de 1970, o clube tem uma
campanha modesta mas depois dá uma arrancada no final e surpreende vencendo
seus adversários (mesmo sem ter um time de grandes estrelas, como o goleiro
argentino Andrada e o experiente atacante Silva, ambos considerados os craques
daquele elenco).
Na semana da conquista, o poeta Carlos Drummond
escreve uma carta para seu neto que vivia na Argentina, demonstrando entusiasmo
com a campanha do seu time do coração: “este ano estou com uma bruta esperança
de ver o meu Vasco campeão carioca. Desde 1958 que nao temos este gostinho”
(Drummond, 2002, p.228). O título vem por antecipação, em setembro, após
derrotar o Botafogo na penúltima rodada. A festa da torcida vascaína vinha três
meses depois da seleção brasileira conquistar de forma brilhante o
tricampeonato no México (1958-62-70) com um futebol exuberante que encantou o
mundo.
Comemorado intensamente pelo povo brasileiro que saía
as ruas a cada vitória, era impossível dos militares não tirarem proveito de
tamanha euforia. Foi o que se viu com a chegada dos jogadores ao país e
milhares de pessoas acompanhavam os ídolos desfilando em carros abertos.
Transformar 90 milhões de cidadãos em torcedores foi a
receita dos propagandistas do governo que souberam tirar proveito do futebol
para promoverem suas campanhas como “Ninguém Segura Este País” e “Brasil, ame-o
ou deixe-o”.
E foi nas ruas que a torcida vascaína mais comemorou o
título com direito a passeata do Maracanã até São Januário após o jogo e, pelo
Centro, da rua do Acre até a Rio Branco durante a semana e, finalizando, com
uma carreata da sede na Lagoa até o Maracanã, no domingo seguinte.
Torcida e torcedores ganham as ruas e o destaque nos
jornais. No dia seguinte a conquista é apresentada uma grande reportagem com
Dulce Rosalina, já quase que inteiramente recuperada do acidente, ela é a
figura principal ocupando uma página entre textos e fotos (aparece ainda com o
braço engessado). Aos 38 anos, ela está na TOV liderando os torcedores e toda a
tensão do jogo com o Botafogo é descrita. A medida que o clube faz 2 a 0 todos
começam a ensaiar o grito de “Campeão”, mas ela resiste, pede para não cantar a
vitória antes do tempo. Até o apito final o drama persiste. Eis que a partida
termina e todos se confraternizam e choram como crianças.
Com o prestigio recuperado a torcida tem as manchetes
dos jornais para varias iniciativas. Dirigentes, torcedores e jogadores
esquecem as desavenças. Ely Mendes promete dois mil balões de gás vermelho para
o jogo das faixas, os dirigentes (Adriano Lamosa) oferecem barris de chope em
São Januário, enfim uma festa completa para tornar aquela conquista como
inesquecível. Para apagar da memória os tenebrosos anos 1960.
No dia do último jogo (com o Fluminense) que seria a
entrega das faixas, uma outra grande reportagem destaca um outro
torcedor-simbolo do Vasco, Cartola. Um humilde senhor que se vestia sempre com
roupas de gala para os jogos e tinha nos seus dentes símbolos do Vasco. O
próprio torcedor já havia sido homenageado no livro de João Antero de Carvalho
em 1968.
Terminava o ano e o clube era eliminado da Taça de
Prata, mas a união com o clube e jogadores estava refeita. Mesmo com o fim do
tradicional (1 clube = 1 torcida), o ambiente entre os torcedores vascaínos era
de confraternização. O azar dos anos 1960 tinha ficado para trás, o pessimismo
dos anos anteriores tinha passado. O signo do “milagre econômico” tinha entrado
em São Januário, os tempos de protesto tinham ficado para trás. Talvez...
Fonte: Livro “100 anos da
Torcida Vascaína”, escrito pelo historiador Jorge Medeiros.
Vasco Jornal O Globo 1970 |
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